VIII. Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista
Capítulo VIII: Gala: a Helena de Esparta e o cavalo da Troia surrealista
Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista é um ensaio dividido em oito capítulos. Você pode ler aqui os capítulos I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII.
VIII. Gala: a Helena de Esparta e o cavalo da Troia surrealista
Ao me aproximar do suposto fim da minha expedição, ele me parece inalcançável. Ele me parece Gala Placidia. Galatea of the Spheres (1952).

Em sua história, enquanto mulher — a todo momento, sob todos os prismas, Gala soa infinita. Em torno dela, sempre mais perguntas que respostas. E a verdade é que dela não se sente deliberação alguma: nada sobre ela soa artificial; soa desejoso, instintivo, visceral, quase. Uma pulsão.
“Heroína póstuma” — acredito que foi como primeiro abordei o mistério envolto em uma figura tão multifacetada. Quanto mais eu pesquisava, mais percebia que a história de cada grande artista do seu meio — Salvador Dalí, Paul Éluard, Max Ernst, André Breton, Louis Aragon, Giorgio de Chirico, Luis Buñuel — a retratava a partir de uma óptica diferente: cada um tinha uma opinião e todos eram incapazes de indiferença a Gala. Pareciam condenados a habitar algum extremo entre o amor e o ódio, a devoção e o desprezo. E eu mesma não fui capaz de me manter indiferente, tampouco ocupei algum extremo; mas fui completamente impactada pela sua volatilidade, contraditoriedade — acredito que, dentre tantas, é essa a sua qualidade mais impressionável: o imenso espaço que se dava para ser contraditória. Se, em algum momento me identificava com a sua personalidade, em outro, não poderíamos ser mais diferentes. Curiosamente, nada disso foi capaz de quebrar a conexão, o olhar meu para quem ela foi enquanto mulher — e suspeito que seja esse o seu efeito sobre qualquer um que também decida investigá-la por conta.
Elena-Gala Dalí se importava com a beleza, a arte, o humor e a magia. “Magnífico” era o seu adjetivo favorito. A gostos e desgostos, ela ocupava lugares à mesa, fosse em jantares fabulosos dos quais era anfitriã, em cafés parisienses, ou em salas ocupadas pelos artistas dadaístas e surrealistas. Também, não há dúvidas de que foi uma mulher que incomodou. Ela não tinha uma personalidade simples e sabia como ocupar espaço, como se fazer ouvida; sabia o valor da sua opinião e confiava no seu olhar. Gala participava e acontecia, tanto quanto fazia acontecer.
Vejo que as mesmas contradições que despertava nos homens e mulheres com quem convivia eram também as contradições que existiam em quem era ela — é fascinante que os extremos não a dividiam, mas a tornavam completa em si. Era tão desapegada e espiritual quanto também era lasciva; tão amorosa quanto antipática; tão organizada quanto impulsiva; tão libertária e opinativa quanto politicamente apática; tão carinhosa e maternal com o alvo do seu amor quanto aversa à maternidade; tão sincera quanto enigmática.
No tarot que ela tanto amava, a Rainha de Copas é um arquétipo que traz uma mulher linda, misteriosa, de cabelos negros, que invoca a profundeza das águas através de um poder hipnótico do qual não se desvia o olhar. Artística, persuasiva, emocionalmente generosa, indecifrável. Na versão do tarot mitológico, a carta é representada por Helena de Troia, cujo rapto (ou fuga) por Páris seria a causa da famosa Guerra de Troia, que durou dez anos. No mito, Helena era considerada a mulher mais linda do mundo, cortejada por vários homens, mas de quem ninguém sabe absolutamente nada sobre as suas vontades, seus sentimentos e motivações. Sabe-se que era uma mulher guiada pelo coração e pelas suas paixões, capaz de mover mundos e mares por quem amava; mas, acima de tudo, era alguém que fazia somente o que lhe agradasse. Não acho que exista uma representação melhor para Gala — e Dalí também não, porque, em diversas ocasiões, referiu-se à esposa como Helena de Troia. Seu nome de batismo já seria um presságio.
Mulher “elênica”, surrealista, a protagonista ofuscada de uma história masculina. Escrevo sobre Gala não para defini-la, mas em um tributo àquilo que realizou em contribuição a uma vanguarda que é hoje secular. Não é exagero algum dizer que, pessoalmente, há em mim uma devoção ao seu legado, com todas as suas contradições — talvez especialmente por elas.
Gala era, sim, a Helena de Esparta; mas, acima de tudo, era também o verdadeiro cavalo da Troia surrealista.
Bibliografia1
BONA, Dominique. Gala. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Trad. Luiz Forbes. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DALÍ, Salvador. The secret life of Salvador Dalí. Trad. Hakoon M. Chevalier. New York: Dial Press, 1942.
DALÍ, Salvador; PAUWELS, Louis. As paixões segundo Dalí. Trad. Raquel Ramalhete de Paiva Chaves. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.
DIEGO, Estrella de. Gala Dalí. Conferência II CICLO "Españolas por descubrir", 2018. Círculo de Orellana em colaboração com o Instituto Cervantes. Disponível no YouTube.
ÉLUARD, Paul. Cartas a Gala, 1924-1948. Trad. Manuel Sáenz de Heredia. Barcelona: Tusquets Editores, 1999.
MINDER, Raphael. Gala Dalí’s Life Wasn’t Quite Surreal, but It Was Pretty Strange. The New York Times. 25 de julho de 2018.
PARINAUD, André. As confissões inconfessáveis de Salvador Dalí. Trad. Flávio e Fanny Moreira da Costa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.
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Os materiais citados foram utilizados para a pesquisa do ensaio completo, que foi dividido em oito capítulos para ser publicado no Substack.