III. Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista
Capítulo III: Os pilares ocultos, os triângulos amorosos e o início do Surrealismo
Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista é um ensaio dividido em oito capítulos. Você pode ler aqui os capítulos I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII.
III. Os pilares ocultos, os triângulos amorosos e o início do Surrealismo
Ainda nas primeiras semanas de pesquisa sobre Gala, estava num bar numa sexta à noite e encontrei por acaso um professor da época em que cursei arquitetura. Quando contei que não havia me formado, ele disse que era uma pena e que, se não tivesse se aposentado no semestre anterior ao que eu decidi trocar de curso, ele teria me convencido a ficar. Por meio segundo, senti como se tivesse desperdiçado um enorme talento porque aquele era um professor excelente e que eu admiro muito — e logo em seguida achei graça porque a história é muito mais do que isso. Mas, saindo de lá naquela noite, me voltei à Gala porque era esse o seu olhar para reconhecer um artista — um poeta, um pintor, um arquiteto, quiçá.
No dia seguinte, de volta às pesquisas, tive o primeiro contato com a tela do surrealista Max Ernst, Au rendez-vous des amis (1922), em que retrata a grande família dos homens surrealistas (e alguns de seus principais admirados, como Dostoiévski e Raphael) e, no canto direito, a única mulher: Gala Éluard. De costas, olhando sobre os ombros, foi retratada em uma ambiguidade de destaque e discrição, como descreviam sua personalidade e presença. Foi, para mim, a confirmação de uma perspectiva em que Gala não foi apenas esposa de dois grandes artistas surrealistas e musa de alguns outros, mas um dos pilares do movimento que, por sua vez, ficou oculto em uma história contada por grandes homens.
Então, me lembrei de um dos projetos em que trabalhei durante o meu período na arquitetura. Em um levantamento in loco para a reforma de uma imensa residência antiga, olhávamos o espaço e sugeríamos o que poderia ser feito para acomodar o projeto. Quando propusemos derrubar uma das paredes que contornava o jardim de inverno no meio da casa, o engenheiro que nos acompanhava sinalizou que, provavelmente, aquela era uma parede autoportante, com função estrutural e não somente de vedação. Possivelmente, ela sustentava a laje e o telhado da casa e, se fosse removida sem um plano estrutural, toda a cobertura poderia vir abaixo. A lembrança me levou a pensar que talvez Gala não fosse um pilar oculto, mas uma imensa parede autoportante que ajudava a sustentar todo um movimento, em torno da qual grandes artistas foram construídos, de forma consciente ou não, através de seus dedos leves e sua presença silenciosa.

Max Ernst viria a ser uma figura importantíssima na vida de Paul e Gala e, consequentemente, para o Surrealismo. A vida criativa do pintor alemão era de fortíssimo cunho subconsciente, repleta de significados e expressões da sua infância, com um mundo onírico indissociável da sua personalidade. Após se conhecerem em novembro de 1921, a sintonia do trio foi tamanha que, com pouco tempo, já criavam juntos e se comunicavam em uma mesma língua misteriosa. À parte das complexidades dessas relações que transitavam entre amigáveis, fraternais e românticas, a sinergia só foi possível porque Ernst era de personalidade extremamente leve e livre, ainda que carregasse uma enorme raiva por ter sido obrigado a lutar uma guerra que não lhe interessava. O artista lidava com grandes traumas e os Éluard sabiam como compreendê-lo e criar espaço para a sua criatividade.
É através do mundo artístico construído por Ernst que Gala volta a se maravilhar com a arte e a vida e se afasta da burguesia parisiense, sendo agora enfeitiçada pelo mundo dos sonhos. É assim que ela escapa do mundano, do rotineiro que sempre desprezou. Em um casamento que valorizava, acima de tudo, a liberdade, o respeito e a sinceridade, Paul não cria objeções ao envolvimento amoroso entre sua esposa e o amigo, mas logo se vê abatido pela história. A dinâmica entre eles é, no mínimo, esquisita, porque, ao mesmo tempo em que as fissuras ficam mais visíveis e os desconfortos cada vez maiores, o movimento que eles fazem é o de intensificar a união: Paul compra obras do amigo para ajudá-lo, chega a sustentá-lo por uma época e, quando ganha do pai uma enorme villa em Eaubonne, leva o pintor para morar com eles. Na casa, Max pinta não somente quadros, mas todas as superfícies, paredes e portas, retratando Gala e todo o seu mundo de sonhos — inegavelmente, a própria residência torna-se uma obra surrealista. Talvez, a admiração que nutriam um pelo outro fosse soberana frente aos incômodos, mas a falta de limites pessoais acaba perturbando o poeta profundamente.



Em 1924, Paul desaparece por seis meses sem dar satisfações a ninguém. O episódio é contado perfeitamente na biografia Gala (1996), um trabalho incomparável e brilhante realizado pela escritora francesa Dominique Bona, a partir do qual me foi possível estruturar a cronologia e relatar inúmeros acontecimentos mencionados nesse ensaio. Ao me deparar com a história, retomei todas as narrativas que denunciam o abandono de Cécile por Gala quando esta foi viver com Salvador Dalí, e notei que nenhuma delas trazia o episódio em que Paul Éluard fez o mesmo, quando deixou esposa e filha sozinhas em um país desconhecido para elas. Quando Éluard retorna à Paris com a esposa que foi ao seu encontro, ele se resume a dizer nada para ninguém sobre seu sumiço. Aos poucos, é readmitido ao grupo dos artistas como se nada tivesse acontecido, o que difere muito do tratamento conferido à Gala, que é duramente julgada pelo seu silêncio sobre o episódio, que mais serve de justificativa para a antipatia que todos nutriam por ela, especialmente Breton.
De toda forma, é na ausência de Paul que são consolidadas as fundações do Surrealismo, ainda que o poeta tenha voltado a tempo de ter seu nome incluído no manifesto redigido por Breton, o líder do grupo. O período entre 1924 e 1928 é o de maior intensidade e louvor do movimento, que também é o momento em que Gala se vê lançada de volta ao tédio e à monotonia contrastantes ao agito revolucionário surrealista que movimentava o seu marido. Então, ela passa a se dedicar a viagens curtas, a escapismos, sempre em busca de algo que volte a movimentá-la por dentro. Não penso que ela tinha consciência disso, mas entendo a sua inquietação como uma artista que não havia ainda construído uma forma de externalizar o pulsar criativo que sempre existiu em si, que se ativava sempre que estava em contato com a arte ou com a produção de artistas ao seu redor. Curiosamente, mesmo que não estivesse produzindo, assumia o papel de musa que tanto lhe cabia. Em 1925, é publicado Au défaut du silence, parceria reconciliatória entre Paul Éluard e Max Ernst: o primeiro, autor dos dezoito poemas inspirados pela esposa; o segundo, autor dos 20 desenhos que ilustram a obra, todos retratando diferentes faces de Gala. A indiferença em relação a ela não é uma possibilidade, assim como a conexão inquebrável entre os dois.


Em 1927, o sogro de Gala morre e deixa uma fortuna milionária de herança para o filho. Então, o casal que nunca foi dado a moderações, não se demora em torrar a fortuna em arte, boas comidas, bebidas, luxos e viagens. No fim do mesmo ano, Paul é novamente internado em Clavadel para tratar uma piora em seu estado de saúde, mas dessa vez as coisas são diferentes porque Gala não está disposta a assumir o papel de cuidadora e sai para viajar o mundo. É nesse período que faz o seu último retorno à Rússia, em meio a viagens por outros países. O marido manda inúmeras cartas declarando seu profundo amor, mas ela mantém silêncio e indiferença por um longo tempo, com escassas comunicações. Quando se reencontram novamente em 1929, Gala já não é a mesma e a relação entre eles está fragilizada, o que não intimida Paul em suas declarações de amor e devoção.
Em 1929, após quase dois anos vivendo como se dispusessem de uma fortuna infinita, Paul perde uma enorme quantidade de dinheiro em função da crise de 1929. Sem muitos recursos disponíveis, aceitam o convite para passar o verão em Cadaqués, na Espanha, junto do poeta belga Camille Goemans e do pintor René Magritte, acompanhados de suas esposas. Lá, o grupo visita o ateliê de um pintor catalão ainda desconhecido e que não havia despertado o interesse de galeristas, apesar de já ter seu talento reconhecido por Picasso e Miró. Gala, por sua vez, não se animou nem um pouco com o plano de férias. Talvez suas cartas de tarot ainda não tivessem sinalizado o que estava por vir — talvez, a grandeza do encontro entre ela e Salvador Dalí não fosse capaz de premonição alguma.
Bibliografia1
BONA, Dominique. Gala. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Trad. Luiz Forbes. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DALÍ, Salvador. The secret life of Salvador Dalí. Trad. Hakoon M. Chevalier. New York: Dial Press, 1942.
DALÍ, Salvador; PAUWELS, Louis. As paixões segundo Dalí. Trad. Raquel Ramalhete de Paiva Chaves. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.
DIEGO, Estrella de. Gala Dalí. Conferência II CICLO "Españolas por descubrir", 2018. Círculo de Orellana em colaboração com o Instituto Cervantes. Disponível no YouTube.
ÉLUARD, Paul. Cartas a Gala, 1924-1948. Trad. Manuel Sáenz de Heredia. Barcelona: Tusquets Editores, 1999.
MINDER, Raphael. Gala Dalí’s Life Wasn’t Quite Surreal, but It Was Pretty Strange. The New York Times. 25 de julho de 2018.
PARINAUD, André. As confissões inconfessáveis de Salvador Dalí. Trad. Flávio e Fanny Moreira da Costa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.
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Os materiais citados foram utilizados para a pesquisa do ensaio completo, que foi dividido em oito capítulos para ser publicado no Substack.
Bem interessante esse trisal aí. A essa altura do seu relato, eu também casaria com Gala.