VII. Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista
Capítulo VII: Falemos, então, de Gala, a artista
Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista é um ensaio dividido em oito capítulos. Você pode ler aqui os capítulos I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII.
VII. Falemos, então, de Gala, a artista
Desde o meu primeiro encontro com a figura hipnótica de Gala, não resisti a encará-la como uma artista por, pessoalmente, ter sempre acreditado no princípio de que é necessário ser um para verdadeiramente reconhecer outro. Não demorou até descobrir que, em certo ponto de sua carreira, o pintor catalão começou a assinar suas obras com o nome de Gala junto ao seu — particularmente, acho lindo como foi escrito “Gala Salvador Dalí” no canto inferior direito da tela Dream caused by the flight of a bee around a pomegranate a second before waking (1944) —, como uma sinalização de que o casal criava em conjunto, de que eram realmente indissociáveis. Nas rotinas diárias de Dalí, extremamente disciplinadas pela esposa, Gala estava sempre presente nos ateliês enquanto ele trabalhava, fosse posando para as pinturas ou lendo e conversando com ele. A expressão criativa sempre fizera parte dela, ainda que não tivesse a mesma constância que os demais artistas com quem conviveu.


Desde sempre, Gala apreciou a moda e, antes de dispor de muito dinheiro, costumava reformar suas roupas e criar modelos novos. Demonstrou ter algum talento para isso porque, no período do sumiço de Paul, confeccionou lenços e gravatas em seda e, com a ajuda de Max Ernst na pintura, saiu de porta em porta para vendê-los, o que garantiu a sobrevivência deles e de Cécile até o retorno do poeta. Na sua biografia (Gala, 1996), Bona narra que, ao desembarcar em Paris e instalar-se na casa dos sogros, Gala se dedicava a decorar o quarto e biblioteca que ela e Paul habitariam enquanto não mudassem para a sua própria residência, sempre mudando a disposição dos móveis e garimpando novas decorações nos brechós parisienses que encontrava em suas andanças. O seu olhar sempre fora voltado para a arte e a beleza, e sua criatividade despontava com facilidade em contato com outros artistas ou com o seu próprio mundo cotidiano. Em uma das passagens da biografia, Dominique escreve:
“Tudo o que é belo a atrai, desde que não seja clássico; para ela, o belo é insólito, sempre distante do que é banal. [...]: a beleza é ‘como o encontro entre um guarda-chuva e uma máquina de escrever sobre uma mesa de dissecação’, um fenômeno raro, surpreendente, irracional.”.
Penso que era como se existisse um portal no olhar da russa e que ela podia enxergar o potencial do que e de quem estava à sua frente, mas não se detinha aí: ela sabia como modelar e avançar os caminhos para fazer com que outras pessoas também os enxergassem com os seus olhos.





A fotografia também foi uma arte com a qual Gala se envolveu com muita intensidade, mas posicionada diante das câmeras. Navegando por acervos digitais de imagens suas, é inegável a sua originalidade ao posar para as fotos, e o que se vê é uma mulher extremamente confortável em ocupar esse lugar. Em 2018, a historiadora da arte Estrella de Diego, em sua palestra intitulada Gala Dalí (disponível no YouTube), destaca que as fotografias para as quais ela posava nunca pareciam um processo unilateral do fotógrafo à modelo, mas um trabalho sincrônico porque ela construía a sua imagem de forma performática em expressões corporais e faciais. Tanto nas fotos em que modela sozinha quanto naquelas ao lado de Dalí, existe muita simetria nos movimentos e posturas do seu corpo, nas inclinações do seu rosto para imprimir o famoso olhar que perturbava aos outros — Gala ressoa uma autoconsciência corporal fascinante, e a impressão que transmite é a de que conhecia cada curva, cada alongamento e angulação do seu corpo, algo que foi expresso não somente nas suas fotografias, mas marcado fortemente nas pinturas de Dalí e Max Ernst, que se dedicaram à representá-la em suas telas.



Quando Salvador a presenteia com o Castelo de Púbol, Gala estava em seus 74 anos, e encarar o envelhecimento foi o seu grande último desafio. Fascinada pela juventude e assombrada pela ameaça de sua frágil saúde, ela já se sentia desconfortável no seu próprio corpo e não tinha interesse em posar para novas obras ou mesmo de ser fotografada — nas poucas fotos de sua velhice, é constante a presença de grandes óculos escuros e roupas volumosas que cobriam a maior parte de sua pele exposta. É dito que ela realizou vários procedimentos de rejuvenescimento, mas, não conseguindo apagar a impressão de sua própria idade, preferia ficar em isolamento. Enquanto grande literata, seguindo a famosa premissa de Virginia Woolf sobre a importância de a mulher garantir a sua independência e ter para si um espaço para criar (A room of one's own, 1929), se dedicou então à exploração da sua expressividade artística. Após a sua morte, foram encontrados em Púbol alguns registros fotográficos de esculturas surrealistas de Gala e, principalmente, diários e registros escritos. O fascinante é que as criações de seus últimos anos revelam uma faceta diferente de sua personalidade usual: um regresso à sua história.

Quando retornou à Europa após quase uma década de exílio, não procurou ninguém de seu passado. A nostalgia, a saudade, nada a faz recorrer àquilo que foi — desde sempre, a única direção possível era para frente: o ontem não existiu, há somente o hoje e o amanhã. Para Gala, nunca foi sobre como as coisas foram boas ou ruins; era sobre o que elas poderiam ser amanhã. Entretanto, mesmo que sua personalidade se mantivesse sob essa diretriz, fiquei encantada quando, em sua palestra, de Diego exibiu a imagem de um dos cômodos de Gala, em Port Lligat, em que a artista revestiu as paredes e armários com colagens de fotos, reportagens e literaturas sobre sua história em uma tentativa de retomada do seu passado. Em especial, havia inúmeras imagens de sua infância e vida na Rússia, o que imediatamente me remeteu a uma passagem do primeiro Manifesto Surrealista (1924), de André Breton:
“Talvez seja a infância que mais se aproxima da ‘vida verdadeira’; [...] a infância onde tudo concorria entretanto para a posse eficaz, e sem acasos, de se si mesmo.”
Esse resgate é feito por Gala em um diário dedicado a registrar algumas de suas lembranças, o único encontrado no castelo após a sua morte, publicado somente em 2011, sob o título La vida secreta: diario inédito.
Os últimos anos de Gala e Dalí não foram tão glamurosos quanto a maior parte da sua vida juntos. Além de ambos sofrerem com a negação da velhice, lidaram também com problemas fiscais, sofreram um grande golpe financeiro de um dos administradores do seu patrimônio, e tiveram graves questões de saúde — Gala estava com ossos e pele frágeis e sofreu algumas quedas que restringiram a sua mobilidade, enquanto Salvador teve inúmeras crises psicológicas decorrentes de estresse, exaustão e do agravamento das suas fobias, guiadas por um terrível medo da morte. Algumas fontes também contam que os seus últimos anos juntos foram marcados por inúmeras brigas que, por vezes, extrapolaram para agressões verbais e físicas. Independente de tudo isso, Salvador sofreu imensamente com a perda da sua musa durante os sete anos que sucederam a morte desta; eram os dois inseparáveis, e a ideia de perder Gala era o equivalente a perder o sentido de toda uma vida. Alegoricamente, diante do seu juízo de Páris, podendo escolher entre todo o dinheiro e prestígio da sua arte ou o amor imortal de sua Elena-Gala de Troia, é inquestionável que ele escolheria a sua musa todas as vezes.



Bibliografia1
BONA, Dominique. Gala. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Trad. Luiz Forbes. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DALÍ, Salvador. The secret life of Salvador Dalí. Trad. Hakoon M. Chevalier. New York: Dial Press, 1942.
DALÍ, Salvador; PAUWELS, Louis. As paixões segundo Dalí. Trad. Raquel Ramalhete de Paiva Chaves. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.
DIEGO, Estrella de. Gala Dalí. Conferência II CICLO "Españolas por descubrir", 2018. Círculo de Orellana em colaboração com o Instituto Cervantes. Disponível no YouTube.
ÉLUARD, Paul. Cartas a Gala, 1924-1948. Trad. Manuel Sáenz de Heredia. Barcelona: Tusquets Editores, 1999.
MINDER, Raphael. Gala Dalí’s Life Wasn’t Quite Surreal, but It Was Pretty Strange. The New York Times. 25 de julho de 2018.
PARINAUD, André. As confissões inconfessáveis de Salvador Dalí. Trad. Flávio e Fanny Moreira da Costa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.
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Os materiais citados foram utilizados para a pesquisa do ensaio completo, que foi dividido em oito capítulos para ser publicado no Substack.