I. Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista
Capítulo I: Gala Dalí e o centenário do Surrealismo
Em meados de março, após escrever o meu livro, comecei a procurar por chamadas abertas para publicar alguns trabalhos, e logo encontrei o edital de uma revista científica para uma edição celebratória do centenário do Surrealismo, que sempre fora a minha vanguarda favorita. Me animei com o tema e vi que a revista tinha uma seção dedicada a produções de formato livre, mas não me senti inspirada a escrever sobre nada específico. Ainda assim, salvei a oportunidade.
Dias depois, me deparei com As abandonadoras, livro da jornalista catalã Begoña Gómez Urzaiz que, ao questionar “que tipo de mãe abandona seu filho?”, busca entender as cobranças feitas às figuras maternas, e faz isso explorando a biografia de inúmeras mulheres conhecidas por não exercerem a maternidade — dentre elas, Gala Dalí. O sobrenome me chamou a atenção porque eu nunca tinha ouvido sobre a esposa do Salvador Dalí, e me surpreendi ao descobrir Gala como uma das grandes personalidades do surrealismo e, mais especialmente, o pilar fundamental da carreira do maior representante do movimento. Logo descobri que Salvador assinou algumas obras como “Gala Salvador Dalí”, sinalizando ela como uma colaboradora do seu trabalho, e ela logo se tornou a minha musa também.
Eu fiquei obcecada com descobrir mais sobre Gala, e toda a minha pesquisa resultou na produção de um ensaio de mais de 10 mil palavras, que me ocupou durante pouco mais de um mês. Ao submeter para a revista, me comprometi a não publicá-lo em nenhum outro lugar, até que, em setembro, os editores decidiram não incluir o texto na edição, e eu fiquei livre para publicá-lo onde eu preferisse. Eu me orgulho desse trabalho tanto quanto me orgulho do meu livro, e é um prazer enorme compartilhar essa história sobre uma mulher tão absolutamente fantástica e contraditória, cheia de reviravoltas dignas de um filme hollywoodiano. Quero que mais pessoas saibam quem foi Elena-Gala Dalí e conheçam a sua relevância para um dos maiores movimentos artísticos da história.
Bem vindos ao universo mais fascinante no qual eu já mergulhei.
Começar a escrever sobre Gala é desafiador. Mesmo após finalizar a minha pesquisa, congelei a história durante quase duas semanas, paralisada, incapaz de dar um passo em direção a ela. Não sei dizer exatamente há quanto tempo estou imersa na vida e nas realizações dessa mulher tão fascinante, mas sei que foi o suficiente para sentir como se Gala tivesse me acompanhado uma vida inteira. É como se, durante todo esse tempo sem marcação de início, eu me visse orbitando sua natureza, sua história, suposições, mistérios, ao mesmo tempo em que conduzia os meus próprios assuntos subconscientes. São esses os momentos em que você se imagina flertando com a loucura.
Então, primeiro: gostaria de colocá-la em cores. Amarelo, sempre. Segundo: perco a estrutura em seguida. Retorno ao ponto zero em um desmonte para reconstruir porque aquela era a abordagem errada. Volto a orbitar essa Gala-áxia, e sem qualquer pedido de perdão pelo trocadilho por entender agora que esse é um trabalho constante de pequenas conquistas: a cada dia ou três, recebo uma nova peça a respeito do que deve ser esse projeto. Por isso, alerto que tentar decifrá-la, tentar tocar seus olhos de esfinge é ser colocado para jogar um jogo surrealista, um dos que Gala tanto amava. Às vezes, é também retornar aos meus próprios sonhos, à minha própria história porque a observo fazendo esse resgate através de mim. Será assim para ti também.
É com muita sobriedade que asseguro que qualquer um que se proponha à tarefa de investigar quem foi Elena-Gala Dalí, seja por curiosidade despreparada ou por motivação histórica profissionalmente munida de método, terá que aceitar o convite para entrar no jogo surrealista. E adianto que ela não colocará o seu enigma sob a ameaça de “decifra-me ou devoro-te” — aqui, não se pode decifrá-la e, inevitavelmente, se verá devorado.
I. O início, a doença e o amor
Elena Dmitrievna Diakonova nasceu em Kazan, Rússia, dia 7 de setembro de 1894, pelo calendário gregoriano. Terceira filha de quatro irmãos, perdeu o pai quando tinha onze anos e não falava sobre ele. Sua mãe casou-se novamente com um advogado burguês liberal, inteligentíssimo, pouco religioso e grande defensor de ideais de justiça, liberdade e progresso. O padrasto, que tinha Gala como sua favorita e era extremamente querido por ela, foi o responsável por apresentá-la à arte, à cultura e à literatura, esta última a sua absoluta paixão ao longo da vida. Ela frequentou colégios prestigiados e era uma ótima aluna, destacando-se em russo e sabendo falar francês e alemão; quando adulta, aprenderia também o inglês e o espanhol. Desde cedo, incentivada pelo ambiente familiar e pelo contato com as visitas dos amigos intelectuais liberais do padrasto, Elena sempre demonstrou grande independência, uma língua afiada e uma sinceridade que não se preocupava em afagar egos.
Apesar da sua aptidão para os estudos, sempre teve a saúde frágil. Com tuberculose, em janeiro de 1913, aos 18 anos, viaja sozinha para o Sanatório de Clavadel, em Davos, Suíça. As instalações e equipe médica eram referência internacional para o tratamento da doença, que na época consistia em cuidados para a recuperação física em espaços arejados pelos ares das montanhas — a vacina BCG foi aplicada em humanos somente em 1921, e o primeiro antibiótico para tratamento surgiria somente após 1946. A renomada instituição inspirou Thomas Mann a escrever A montanha mágica (1924), no período em que visitava sua esposa internada Katharina Mann. O poeta recifense Manuel Bandeira também esteve na instituição no mesmo período e cultivou amizade com Paul Éluard, poeta francês e o primeiro grande amor de Gala.
Paul e Gala se apaixonaram à primeira vista em uma improvável aproximação: ele vivia acompanhado dia e noite pela mãe, enquanto ela era de enorme independência e antipatia, com quem ninguém conseguia aproximação ou sabia nada a respeito — nem mesmo o seu nome era uma certeza porque se apresentava a todos como Gala, mas seus registros eram diferentes: seu pai a batizou Elena contrário à vontade da mãe, que tinha escolhido para a filha o nome Gala, que acabou adotado pela mesma. Desde sempre, a menina era um mistério a todos e nunca teve interesse em fazer amigos em momento algum da vida. Mas, após aproximar-se do poeta, nunca mais estariam separados — mesmo com todos os altos e baixos, distanciamentos e reconciliações, e até mesmo após o seu divórcio em 1932, Gala e Paul mantiveram contato por cartas durante muitos anos. Enquanto tratavam a doença nas montanhas suíças, os jovens dividiram o senso de humor, a paixão pela literatura e seus segredos, e é lá que Gala enxerga o enorme potencial do poeta e o incentiva a escrever, opina sobre seus poemas, torna-se sua musa e garante que ele está destinado a um enorme sucesso.
Em 1914, meses após o início da Primeira Guerra Mundial, ela volta à Rússia para ficar com a família e mantém o contato por cartas com Paul, que tinha retornado à França. Eles juram às famílias que ficariam juntos e Gala insiste em ir encontrá-lo, para enorme desespero dos pais de ambos que, em plena guerra, não cogitavam a possibilidade de casamento algum. Após meses de apatia de Gala, da convocação de serviço militar do poeta aos 18 anos, e em meio a centenas de cartas, em 1916, ela consegue viajar para a França.
Sabe-se pouquíssimo a respeito de sua família e da sua vida antes de sair da Rússia, para onde voltaria somente uma vez para uma breve visita anos antes de conhecer Salvador Dalí em 1929, e Gala não olharia para trás até os seus últimos anos. Esse é um aspecto importantíssimo de sua personalidade: para ela, o passado não existia; somente o presente e o futuro a importavam. Apesar de passional e sensível, a nostalgia e a memória não a serviam em nenhuma medida. E a cada novo ciclo, a cada novo desafio ou glória em seu caminho, era apenas certo que seguiria sempre em direção à grandiosidade que sempre soube que seu futuro reservava. Em uma das cartas escritas a Paul no período, ela defendia “Eu te prometo, nossa vida será gloriosa e magnífica.” (Lettres à Gala, es. Cartas a Gala, 1999).
Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista é um ensaio dividido em oito capítulos. Os capítulos ainda estão sendo publicados. Você pode ler aqui os capítulos I, II e III.
Bibliografia1
BONA, Dominique. Gala. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. 1924. Trad. Luiz Forbes. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DALÍ, Salvador. The secret life of Salvador Dalí. Trad. Hakoon M. Chevalier. New York: Dial Press, 1942.
DALÍ, Salvador; PAUWELS, Louis. As paixões segundo Dalí. Trad. Raquel Ramalhete de Paiva Chaves. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.
DIEGO, Estrella de. Gala Dalí. Conferência II CICLO "Españolas por descubrir", 2018. Círculo de Orellana em colaboração com o Instituto Cervantes. Disponível no YouTube.
ÉLUARD, Paul. Cartas a Gala, 1924-1948. Trad. Manuel Sáenz de Heredia. Barcelona: Tusquets Editores, 1999.
MINDER, Raphael. Gala Dalí’s Life Wasn’t Quite Surreal, but It Was Pretty Strange. The New York Times. 25 de julho de 2018.
PARINAUD, André. As confissões inconfessáveis de Salvador Dalí. Trad. Flávio e Fanny Moreira da Costa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.
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Os materiais citados foram utilizados para a pesquisa do ensaio completo, que foi dividido em oito capítulos para ser publicado no Substack.
Que bobeada da revista. Sorte a do Substack ter ganhado esse texto. Adoro esses perfis de mulheres próximas de figuras conhecidas, mas que o público geral ainda precisa descobrir porque foram escondidas à sombra de homens. Aguardando os próximos capítulos.