II. Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista
Capítulo II: Gala à la francesa, os Poetas-Mosqueteiros e a inquietação dadaísta em Paris
Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista é um ensaio dividido em oito capítulos. Você pode ler aqui os capítulos I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII.
II. Gala à la francesa, os Poetas-Mosqueteiros e a inquietação dadaísta em Paris
Sabe-se lá como, mas, aos 22 anos, a notável habilidade persuasiva de Gala convence sua família da sua mudança para a França em plena Guerra Mundial para casar-se com Paul Éluard. Convence também a família do poeta de responsabilizar-se por cuidá-la e acolhê-la, ainda que Paul esteja longe de casa e sequer tenha previsão de voltar dos campos de batalha. Eles se casam no início de 1917 (Gala usou um vestido verde escuríssimo) e iniciam uma vida juntos somente após o término da guerra, em novembro de 1918 — Cécile, a única filha do casal, nasce em maio de 1918.


Ao falar sobre a história de Gala, é sempre enfatizada sua inaptidão para a maternidade (a inaptidão de Paul para a paternidade, por sua vez, é comumente deixada de lado), e essa é uma verdade: ela não tinha o menor interesse na vida doméstica e na dedicação à criação de sua filha. Desde o nascimento, Cécile foi confiada em maioria do tempo aos cuidados da avó paterna, inclusive quando Gala foi viver com Salvador Dalí na Espanha na década de 30. Antes de falecer em agosto de 2016, a primogênita de Gala concedeu entrevistas a Joan Bofill para um documentário sobre a sua história (Cécile petite fille de raison, ainda em pós-produção no momento da publicação desse texto) e dividiu cartas inéditas que a mãe lhe escreveu com carinho praticamente ao longo de toda a sua vida. De toda forma, a personalidade de Gala não tinha espaço para a criação de outro ser humano ou para qualquer família ou amigo: sua dedicação seria inteira voltada aos homens de sua vida e à arte que produziam.
Em Paris, ao chegar à casa da futura sogra, Gala se ocupou de praticar francês, aprender a costurar e a ajudar nos cuidados domésticos, com os quais não tinha muita afinidade, mas se dedicava com afinco por ser extremamente detalhista, organizada e perfeccionista — provavelmente sua máxima expressão virginiana. Não demorou para entediar-se com a rotina, afinal, tinha ido à Paris em busca de um futuro glorioso. Quando Paul voltou da guerra desesperançoso e enlutado pela juventude que lhe foi roubada, foi trabalhar nos negócios imobiliários do pai, para imenso desagrado do casal que desejava viver exclusivamente em função da escrita do poeta. Em 1919, Paul conhece André Breton, Louis Aragon e Philippe Soupault, editores da revista Littérature e poetas que viriam a ser seus grandes amigos ao longo da vida e as mentes brilhantes envolvidas nos grandes movimentos vanguardistas Dadaísmo e Surrealismo. Os quatro mosqueteiros encontraram uns nos outros a mesma indignação pelos anos de sua vida desperdiçados na guerra e o tédio com trabalhos convencionais para sobreviverem, e é em torno disso que movimentam a sua produção literária com reuniões fechadas ao mundo externo para discussões sobre seus trabalhos.

Paul nunca deixou de considerar as opiniões de Gala em seus poemas e a parceria entre os dois sempre se manteve muito sólida. Em pouco tempo, para o desgosto do restante do grupo, Gala começa a acompanhar o seu poeta nas reuniões, e ainda que não se manifestasse sobre os trabalhos que via, sua presença incomodava os demais — sua feminilidade era uma perturbação àquela fortaleza masculina que haviam construído. Breton e Aragon a detestavam por achá-la nada simpática, pela sua expressão austera e sua incômoda aura misteriosa, que despertavam enorme desconfiança nos demais. Independente dos desagrados — ou especialmente devido a eles —, ela firma sua posição ao lado de Paul e ocupa esse lugar até que decida não mais ocupá-lo. Será sempre essa a sua posição em relação ao artista que ama.
Com uma intuição enorme e toda dada a previsões sobre a própria vida, Gala era extremamente movida pela fé e pelo misticismo. Acreditava em Deus e via-O manifestado em todas as religiões, e era esse otimismo e crença que lhe direcionavam sempre a um futuro infinitamente melhor do que o presente que vivia — era essa a confiança que transmitia a Paul, e que também transmitiria a Dalí no futuro. A fé que tinha no sucesso e potencial de ambos era tão grande quanto a que tinha no Divino, e a ela não importava a quem se desagradasse com a sua presença. Sua única missão era que, primeiro Éluard e depois Dalí, se tornassem os maiores artistas que poderiam ser — missão, de fato, cumprida com sucesso.
Em 1920, o grupo é tomado pelo êxtase dadaísta que chega a Paris. Desde 1916, a lógica já estava subvertida pelas mãos da vanguarda que estava agitando a Suíça com a inquietação de Tristan Tzara, com quem Breton começa a dialogar em 1919. O grupo logo caiu em graças com o movimento, e não foi difícil para Gala se ver cativada pela intensidade, fúria, liberdade e, claro, pelo humor dadaísta. Para os artistas que fundariam o Surrealismo quatro anos mais tarde, o impacto dessa vanguarda foi significante, especialmente por sua contestação do racional e resgate da infância pela espontaneidade e divertimento.
O dadaísmo trouxe ao grupo uma imensa expansão de conceitos, ideias e círculos sociais, e aproximou os Éluard do contato com as artes plásticas, quando iniciaram uma coleção de arte moderna particular e cultivaram amizades com figuras importantes como Amedée Ozenfant, fundador do Purismo ao lado de Le Corbusier, e Giorgio de Chirico, pintor italiano que adorava Gala e foi um dos fundadores do Surrealismo — anos à frente, pediria a ela que o agenciasse também. É relevante compreender as influências artísticas e as efervescências da Paris no início dos anos 20 porque Gala, por mais que relegada a acompanhante de Paul, estava em contato com os principais artistas da época e foi através desses diálogos e visitas a ateliês que ela pôde aprimorar o seu talento nato para identificar e produzir arte. Essa vivência e catálogo de contatos importantes lhe foi essencial décadas à frente quando seu caminho cruzou com o de Dalí e, munida de sua inabalável fé, decidiu então ajudar a construir o nome do artista catalão.

Bibliografia1
BONA, Dominique. Gala. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Trad. Luiz Forbes. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DALÍ, Salvador. The secret life of Salvador Dalí. Trad. Hakoon M. Chevalier. New York: Dial Press, 1942.
DALÍ, Salvador; PAUWELS, Louis. As paixões segundo Dalí. Trad. Raquel Ramalhete de Paiva Chaves. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.
DIEGO, Estrella de. Gala Dalí. Conferência II CICLO "Españolas por descubrir", 2018. Círculo de Orellana em colaboração com o Instituto Cervantes. Disponível no YouTube.
ÉLUARD, Paul. Cartas a Gala, 1924-1948. Trad. Manuel Sáenz de Heredia. Barcelona: Tusquets Editores, 1999.
MINDER, Raphael. Gala Dalí’s Life Wasn’t Quite Surreal, but It Was Pretty Strange. The New York Times. 25 de julho de 2018.
PARINAUD, André. As confissões inconfessáveis de Salvador Dalí. Trad. Flávio e Fanny Moreira da Costa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.
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Os materiais citados foram utilizados para a pesquisa do ensaio completo, que foi dividido em oito capítulos para ser publicado no Substack.