Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista é um ensaio dividido em oito capítulos. Você pode ler aqui os capítulos I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII.
VI. Os Dalí e o sonho americano
Inaugurada a longa temporada dos Dalí na América (de 1939 a 1948), é o início da construção do que viria a ser o enorme império daliniano do qual Gala era não somente a rainha, mas a grande mente por trás dos negócios. Quando chegam aos Estados Unidos, passam os primeiros meses na mansão de uma amiga do casal no interior da Virgínia, período em que Dalí escreve sua biografia La vie secrète de Salvador Dalí (1942) com a ajuda de Gala e da anfitriã Caresse Crosby que, além de editora, foi a inventora do primeiro sutiã moderno. Na obra, o pintor busca um renascimento ao abandonar os medos e traumas que guiaram sua vida até então, não deixando de idolatrar a esposa e dedicar a ela seu eterno amor e adoração. Com o livro finalizado, o casal muda-se para Nova York e, quando lá encontra toda a classe artística parisiense exilada, não faz questão alguma de misturar-se. Os únicos objetivos dos Dalí são fazer dinheiro e consolidar o nome do pintor.


Nos anos 40, Salvador constrói sua personalidade e, consequentemente, sua marca, ganhando alcance internacional e saindo completamente do seu círculo restrito à burguesia europeia. O catalão entendeu que o seu sucesso dependeria de um teatro, do personagem excêntrico e de ar arrogante que o público conheceria. Para o bem ou para o mal, funcionou. Em 1941, o Museu de Arte Moderna realiza uma exposição retrospectiva de suas obras. A partir daí, o pintor e sua fiel escudeira surfam na onda de prestígio que a América tão facilmente lhes concede, não demorando para começarem a aceitar encomendas não somente para quadros, mas vitrines de loja, cenários para filmes, roupas e acessórios, joias, anúncios publicitários. Seu humor surrealista cai como uma luva para o capitalismo, e sua popularidade e alta comercialização garantiu ao pintor enorme prestígio em meio à elite novaiorquina.
Ao lado dele, Gala se mantinha ocupadíssima ao assumir funções de musa do pintor, agente artística, negociadora de contratos, administradora financeira, relações públicas e, claro, esposa. Ambiciosa, negociava o maior valor possível por cada trabalho do pintor e não hesitava em cobrar quantias consideradas exorbitantes para a época. Algumas senhoras socialites da Nova York da época que encomendaram trabalhos do pintor relataram o quão desconcertante era fazer negócios com Gala, definindo seu olhar e postura como intimidantes, com uma enorme determinação, capaz de convencer qualquer um a pagar o preço que colocasse — tinha absoluta certeza do enorme valor do trabalho do marido. Conforme relatos posteriores de Salvador, a avidez indiscutível de Gala pelo dinheiro tinha raízes mais profundas do que o mero materialismo e desejo por luxo e conforto que ambos compartilhavam, porque era ancorada em uma necessidade imensa de garantir a segurança de recursos para pagar tratamentos médicos caso fosse necessário. Sua saúde frágil em decorrência da tuberculose a assustava e, com a idade lhe alcançando, temia viver novamente a pobreza que lhe impediria o acesso a médicos e remédios.

Quando retornam à Europa no fim dos anos 40, Dalí já é um fenômeno artístico e comercial e assim se manteria até o fim de sua vida — em 1970, o patrimônio administrado por Gala era avaliado em 10 milhões de dólares, o equivalente a 80 milhões de dólares corrigidos para os dias atuais, aproximadamente. Instalam-se na Espanha, ampliando sua residência em Port Lligat conforme agora o seu dinheiro poderia bancar, onde hoje funciona a Casa-Museu Salvador Dalí, famosa pelas imensas esculturas de ovos adornando o edifício (coloquei abaixo algumas fotos da residência, mas você pode ver mais imagens aqui e aqui — juro, vale a pena). Lá, o pintor concebe um pátio que, no fim dos anos 50, torna-se um palco para suas exibições e performances abertas ao público, ainda que sem avisos prévios: ele aparecia como um rei, proclamava monólogos, ocupava um trono, e se mostrava como um espetáculo que, ao longo dos anos 60, muitos turistas apareciam para ver. Enquanto ele se divertia em seu reinado, Gala já não estava tão empolgada com as visitas, ainda que nunca se opusesse às expressões criativas do marido.







A exaustão pela completa devoção ao universo do pintor após anos agitadíssimos começa a bater à porta de Gala. O avanço da idade, o imenso estresse após mais de uma década administrando duramente enormes quantidades de dinheiro e contratos, a vontade de diminuir o ritmo e começar os preparos dos seus últimos anos — tudo isso pesa para ela e torna insuportável lidar com as demandas, humores e o estilo de vida daliniano. Gala agora deseja sossego, silêncio e a calmaria que nunca teve em sua vida, e isso começava a se mostrar incompatível com as vontades do marido que demandavam constante presença. Por isso, buscando fugir da casa constantemente cheia de convidados, ela começa a viajar por inúmeros países buscando algum distanciamento, ainda que nunca deixe de ligar para Dalí para demonstrar a presença e a estabilidade que ela lhe garantia e ele imprescindia para manter sua produtividade — mesmo que agora estivessem na Europa, o ritmo de trabalho que adotaram na temporada estadunidense não mudou, com cada vez mais encomendas.
Em 1968, Dalí presenteia Gala com um castelo antigo na aldeia de Púbol, na província de Girona, cuja reforma e adaptação seriam realizadas conforme agradasse a ela, desde a estrutura e decoração até o enorme jardim abandonado. Assim, o castelo se torna o espaço perfeito para Gala dedicar-se à sua criatividade livremente — além de escritos, colagens e o próprio design do espaço, existem fotografias de esculturas surrealistas que desenvolveu nesse período anterior a 1982, ano da sua morte. O lugar é tão sagrado a ela que, ao aceitar o presente do marido, lhe impõe a regra de que nunca poderia visitá-la a não ser que fosse formalmente convidado, o que ele respeitou. Ao olhar para esse último capítulo da sua vida, não enxergo que Gala estivesse totalmente em paz em face de todas as questões com as quais lidava em seu mundo interno e aos últimos anos conturbados com Dalí — mas é muito forte a impressão de que, talvez pela primeira vez, sentia-se realmente livre, com um tipo de liberdade que somente os artistas reconhecem: o pleno espaço para criar.






As fotos do castelo da Gala são realmente muito impressionantes, mais até que a casa de Port Lligat, na minha opinião. Nessa página aqui você pode acessar mais fotos.
Bibliografia1
BONA, Dominique. Gala. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Trad. Luiz Forbes. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DALÍ, Salvador. The secret life of Salvador Dalí. Trad. Hakoon M. Chevalier. New York: Dial Press, 1942.
DALÍ, Salvador; PAUWELS, Louis. As paixões segundo Dalí. Trad. Raquel Ramalhete de Paiva Chaves. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.
DIEGO, Estrella de. Gala Dalí. Conferência II CICLO "Españolas por descubrir", 2018. Círculo de Orellana em colaboração com o Instituto Cervantes. Disponível no YouTube.
ÉLUARD, Paul. Cartas a Gala, 1924-1948. Trad. Manuel Sáenz de Heredia. Barcelona: Tusquets Editores, 1999.
MINDER, Raphael. Gala Dalí’s Life Wasn’t Quite Surreal, but It Was Pretty Strange. The New York Times. 25 de julho de 2018.
PARINAUD, André. As confissões inconfessáveis de Salvador Dalí. Trad. Flávio e Fanny Moreira da Costa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.
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Os materiais citados foram utilizados para a pesquisa do ensaio completo, que foi dividido em oito capítulos para ser publicado no Substack.