V. Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista
Capítulo V: O Surrealismo a serviço da Revolução — os Dalí, não
Gala Dalí: a Elena da Troia surrealista é um ensaio dividido em oito capítulos. Você pode ler aqui os capítulos I, II, III, IV, V, VI, VII e VIII.
V. O Surrealismo a serviço da Revolução — os Dalí, não
Adentrar o capítulo político da vida dos Dalí foi, em um primeiro momento, indigesto. Mesmo que o meu objetivo fosse sempre retornar o olhar à Gala e à sua história, é com um respeito enorme que não se deve dissociá-la de Salvador Dalí porque isso seria contrário àquilo que ela defendeu ao longo de toda a sua vida com ele. Eram ambos únicos e, juntos, eram um só. Gala sempre fora uma mulher opinativa, crítica, independente e livre, mas sua maior característica era a lealdade àquele que ela amava — primeiro Paul, depois Salvador. O nível de lealdade que ela era capaz de dedicar a alguém é, para ser justa, quase intangível para qualquer ser humano contemporâneo — ou talvez esse seja o meu máximo pessimista diante de uma sociedade tão dedicada às suas ideologias e bandeiras, sejam elas quais forem. Seria alguém capaz de defender arduamente quem ama diante de extremismos ideológicos? Talvez uma mãe ou um pai com relação a um filho, mas ainda observo isso com muito ceticismo e não estenderia isso a mim.
Ao olharmos para o centenário surrealista, uma vanguarda do período entreguerras, é inevitável falar sobre a política e a disputa ideológica que estava no centro de tudo, e mais inevitável ainda encarar tão nitidamente os reflexos do que vemos e vivemos hoje. Não só inevitável, mas também assustador. As diferenças de Dalí com o posicionamento político surrealista iniciavam-se em sua absoluta defesa da liberdade de criação, sem qualquer obrigação de partidarismo político ou ideológico. Ele, assim como Gala, sempre fora um rebelde, gostava da ordem, defendia a liberdade individual e era completamente averso às regras e coletivismos. Eram ambos egoístas e individualistas, gostavam do luxo, de atender às suas vontades e não estavam dispostos a sacrifício algum por quem fosse. Anticomunistas, era impensável para eles, e especialmente para Gala, identificar-se com os ideais de seus compatriotas russos da época, defensores da igualdade absoluta e de regras coletivistas. Aos dois, interessava somente viver conforme lhes conviesse, sem interesse algum pela política.

Em 1930, anos antes da expulsão de Dalí, o grupo surrealista vivia uma corda bamba com o Partido Comunista. Após a publicação do segundo manifesto do movimento, o grupo foi acusado de não servir à revolução por defender o direito do indivíduo em sua expressão — em princípio, concordavam com Dalí, mas seu imenso desejo e crença no potencial de uma sociedade justa e igualitária não aceitava a negação da política comunista. Eram artistas que vieram de um engajamento fortíssimo no movimento dadaísta, contrários à disciplina, à ordem absoluta, ao militarismo, à restrição da liberdade — como iriam submeter-se a uma disciplina partidária e intelectual, à censura? O comunismo e o Surrealismo eram revolucionários e em favor de uma renovação social, reprovavam a burguesia, e por tudo isso os artistas não conseguiam entender as hostilidades. Com muita frustração, foram expulsos do Partido em 1933, ainda que não tivessem deixado de acreditar nos ideais de justiça, liberdade e revolução que sempre defenderam.
Por sua vez, apesar de apolítico em maioria, Salvador sempre defendera a monarquia e o tradicionalismo. Há registros fotográficos de alguns encontros do pintor com o general Francisco Franco, em que saudava a sua tentativa de restaurar a monarquia espanhola — fosse lá o que isso significava para ele. Sabe-se também que Dalí demonstrava horror ao anarquismo (mesmo que também já tivesse se proclamado anarquista) e à desordem — em 1936, início da Guerra Civil Espanhola, Federico García Lorca, escritor espanhol e amigo de Dalí, é denunciado, detido e fuzilado, não se sabe ao certo por quem ou o porquê, se por motivações políticas ou por ser homossexual. O fato é que a morte do poeta perturba o pintor catalão e sua esposa, que já estavam abalados com o suicídio de seu amigo Crevel no ano anterior. René estava com a saúde fragilizada pela tuberculose, sem chances de melhora, e extremamente exausto e frustrado com os desgastes entre o Partido Comunista e o Surrealismo. Dalí havia pintado Soft construction with boiled beans (premonition of Civil War) (1936) meses antes do conflito começar, e estava assombrado ao assistir o desenrolar dos acontecimentos em direção às suas terríveis premonições.

Naquela época, os Dalí viajaram sem parar porque sua amada Espanha não era mais o seu refúgio, seu ideal de segurança — Picasso pintaria a Guernica em 1937 em denúncia ao massacre ocorrido na cidade homônima espanhola. Em 1938, Paris sediaria a última exposição surrealista, da qual Salvador participou, ao mesmo tempo em que ocorriam os últimos acontecimentos políticos precedentes à Segunda Guerra. Quando declarada, Paul Éluard seria novamente convocado; Max Ernst, que estava no sul da França, é detido por ser cidadão alemão e levado prisioneiro por alguns meses. Gala e Dalí também se refugiam no sul francês por um tempo, e fogem desesperados assim que os alemães tomam Paris: Salvador vai rapidamente à Espanha rever o pai e a irmã enquanto Gala vai à Lisboa providenciar os arranjos para a sua fuga para os Estados Unidos, onde viveriam de 1939 a 1948, em meio a inúmeros outros artistas que também buscaram exílio na América, como Bretón, Chagall, Ozenfant, e o próprio Max Ernst.
Quanto às convicções políticas de Gala, sabe-se que sua posição se resumia a estar sempre ao lado de Dalí. Quanto a este, em meio a tantos posicionamentos diferentes e contraditórios, escreveria em seu livro La vie secrète de Salvador Dalí (1942):
“A hiena da opinião pública se esgueirava ao meu redor, exigindo de mim, com a ameaça babando de seus dentes expectantes, que eu me decidisse de uma vez por todas, que me tornasse stalinista ou hitlerista. Não! Não! Não! e mil vezes não! Eu continuaria sendo desde sempre e para sempre dalinista, e apenas dalinista! Eu não acreditava nem na revolução comunista, nem na revolução nacional-socialista, e nem em nenhum tipo de revolução. Acreditava apenas na suprema realidade da tradição.”. — pág. 360 (tradução livre), The Secret Life of Salvador Dalí (1942). Disponível em inglês no Internet Archive para livre acesso.

Investigar a política em torno dos Dalí é encontrar inúmeras fontes atribuindo a eles inúmeros posicionamentos diferentes — é também ouvir deles próprios publicações e pronunciamentos diferentes uns dos outros. A minha interpretação é que, aos dois, interessava somente viver em paz, o que era pedir demais em uma Europa que foi o palco de duas grandes guerras mundiais em menos de meio século, além de todas as guerras civis cruelíssimas em diferentes países. Vejo a apatia política deles como uma revolta e indignação por perceberem que lado político algum se mostra capaz de garantir a liberdade e a dignidade de uma vida segura, nem a eles e nem a ninguém. Acima de tudo, enxergo Dalí como o performático extravagante que era: fazia questão da polêmica, do incômodo, da provocação, e conseguia tudo isso quando se mostrava contrário à liderança e metodismo de Breton na época do grupo surrealista.
Não foi planejado dedicar um capítulo desse ensaio à política em torno de Salvador Dalí e, principalmente, de Gala — foi, na verdade, algo com o qual lutei contra durante várias semanas por respeito ao posicionamento apolítico deles. E, se por um lado estão os dois mortos e não aparecerão para me responsabilizarem pelas minhas perspectivas e interpretações, hoje, mais do que nunca, entendemos muito bem o enorme peso de conferir a alguém determinado posicionamento político, seja ele qual for. Curiosamente, a minha relutância em escrever a respeito se transformou em uma necessidade, algo sem o qual eu não consegui avançar na história de Gala. A minha inquietante vontade de me elaborar em uma narrativa sobre ela nasceu de uma enorme admiração pelos seus feitos no mundo artístico, por todo o mistério inerente a quem era e, consequentemente, ao que eu acredito que ela representa hoje à história da arte. Tudo isso foi delineado por um compromisso pessoal com abordar a sua história sem julgamento algum sobre as suas escolhas, seus pensamentos e posicionamentos — que, em verdade, são pouquíssimos. E agora, como se tivesse percebido o humor surrealista que permeia todo esse meu encontro com a bruxa russa, me dei conta de que nada disso me eximiu de ser pessoalmente afetada, desafiada pelas contradições e multifaces de Gala.
Em tempos políticos — que hoje eu acredito serem a todo momento porque nossa existência é política até mesmo àqueles que tentam manter-se alheios a ela, como os Dalí —, é impossível não ser afetado pelo posicionamento do outro, seja ele qual for. Se muito, o que se percebe é mais do que a concordância ou desavenças com opiniões pessoais, mas o quão interligados estamos com a sociedade da qual fazemos parte a todo o momento. Com isso, o que se destaca é a percepção do tamanho da nossa responsabilidade — e eu não acho que há muito espaço para não ocupar espaço.
Bibliografia1
BONA, Dominique. Gala. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BRETON, André. Manifesto do Surrealismo. Trad. Luiz Forbes. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DALÍ, Salvador. The secret life of Salvador Dalí. Trad. Hakoon M. Chevalier. New York: Dial Press, 1942.
DALÍ, Salvador; PAUWELS, Louis. As paixões segundo Dalí. Trad. Raquel Ramalhete de Paiva Chaves. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.
DIEGO, Estrella de. Gala Dalí. Conferência II CICLO "Españolas por descubrir", 2018. Círculo de Orellana em colaboração com o Instituto Cervantes. Disponível no YouTube.
ÉLUARD, Paul. Cartas a Gala, 1924-1948. Trad. Manuel Sáenz de Heredia. Barcelona: Tusquets Editores, 1999.
MINDER, Raphael. Gala Dalí’s Life Wasn’t Quite Surreal, but It Was Pretty Strange. The New York Times. 25 de julho de 2018.
PARINAUD, André. As confissões inconfessáveis de Salvador Dalí. Trad. Flávio e Fanny Moreira da Costa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976.
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Os materiais citados foram utilizados para a pesquisa do ensaio completo, que foi dividido em oito capítulos para ser publicado no Substack.