Eu honestamente não sei como começar e, por isso, só começo. Com alguma fé que surgirá uma palavra depois da outra e que isso resultará em alguma coisa — no mínimo, um texto incompreensível; com sorte, alguma salvação.
O meu verão não saiu como planejado. Em absolutamente nada.
E como não sei por onde começar a explicar, vou começar do final, que foi quando percebi que o meu livro, A menina que salvou os peixes, aconteceu comigo. De alguma forma, em onze contos, escrevi uma profecia que me aconteceria um ano depois. E explicar isso soa, na verdade, completamente alucinatório, mas a Verdade é que eu fui colocada para viver essas histórias como se estivesse cumprindo um papel que não percebi cumprir até chegar ao extremo final, à última linha, só para finalmente entender que eu já tinha ali a fórmula para a salvação do meu inferno pessoal.
Não sei mais de quantas formas posso dizer que não sei. Eu mal sei o que perguntar. Me pergunto, então, o que estou fazendo de errado, e não pareço receber uma resposta. Me pergunto, então, o que posso fazer — não há mesmo algo que eu possa fazer? A resposta ainda é não, nada. Me pergunto, então, por quê? O que? Quando? Quem? Você promete?
(segunda-feira, 17 de março de 2025, 10:18:23) [do meu inferno pessoal]
Semana passada, visitando a última página do meu livro para copiar do colofão a citação da Clarice de A paixão segundo G.H., vi uns parágrafos acima que É sempre garantida a sobrevivência, a salvação e, pouco antes, o lembrete de que cada peixe em seu nado estava unido a outro peixe em seu nado e a outro peixe em seu nado e — um cardume inteiro unido pela busca por alguma salvação de si. Minutos antes, eu tinha sido levada ali, àquela página, por uma note compartilhada de outra citação da Clarice que me convocou ao belíssimo texto O tempo do meio:
“Tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar a desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo?”
Clarice Lispector - A Paixão Segundo G. H.
O texto acabou me encontrando exatamente onde eu estava, nesse tempo do meio em que nada acontece; em que se parece que cessaram as revoluções e sobrou somente esse silêncio imenso.
Se eu sentar contigo, num café ou num bar, e te contar dia-por-dia, refazendo os meus passos todos desde as premonições do verão na primavera, desde muito antes e desde muito depois — todos esses tracejados até hoje, não tenho ideia de que isso ficaria claro pra você. É pouco, bem pouco claro pra mim também — e eu estava lá, sabe? Olha;
1- Menino-Robô: de cara e bem no início, tive de recorrer ao amor para ser capaz de salvar; alguma grande inocência, alguma memória e alguma cor; tudo uma grande brincadeira de criança: teve de ser e foi tão, tão urgente que fosse;
2- Pel’A menina que salvou o peixe, fui terrivelmente lembrada: não poderia ter sobrevivido porque ela pediu. Mas, talvez, na parte sua que ainda era criança e tinha pedido, porque ela pediu, ele sobreviveu.;
3- Diante do (Nós de) Marinheiro: de tudo o que me voltou, cruzando as portas que não sabia que cruzava, descobri o aproximar das linhas sagradas que dividiam após ir embora das pedras. [o caminho é cheio de anunciações a todo momento e é impossível saber.] [Às vezes, também, não é o momento de ir embora das pedras];
4- Que se resolvam com Deus: pulei de susto com as minhas necessidades de confissões e, ao chegar Lá, tive a minha confissão negada também. Sabe qual é a imensa vulnerabilidade brutalmente sincera que existe em sentar-se num banco para confessar suas confissões a si própria? Sabe exatamente o que é fazer uma promessa e cumpri-la antes da hora? E esse aqui: esse aqui é uma piada: Porque os escritores sabem do seu destino. Sabem que as palavras que vêm a eles, os caminhos em si, tudo lhes pertence, tudo já vive neles desde o início dos tempos. Desde as vésperas. Eles já têm as respostas que nunca tiveram para as perguntas que nunca farão. (e eu sigo rindo e saindo e rindo sem parar de rir e sair);
5- Em Falso brilhante, esse grande desafio sobre-humano de abrir-se para o fluxo das coisas, para as possibilidades todas; recalcular receitas para as ausências e o cheiro de cheiro-verde subindo no ar;
6- Inês.: um ano depois, dia 29 de janeiro foi, mais uma vez, um dia urgente; mas, dessa vez, eu estava lá. Me foi dada a chance de estar lá; o mesmo mundo e a mesma suspensão, em território limitado de outra cidade que é também a minha cidade: eu estava lá em um novo 29 de janeiro e não havia nada que eu pudesse fazer. Encontrei algum perdão, mas não me suavizei. Tampouco entendi qualquer coisa.;
7- Se olhasse com mais carinho e criancice para o Dois-Sóis, lembraria que quando temermos, quando desesperadamente precisarmos de doçura: será esse o momento de adoçar o mamão com açúcar cristalino; ao menos, esse verão foi tempo de goiabas e os pés estiveram carregados;
8- Olivia morreu na noite do dia 9 de março. Exatamente nesse dia. Me restou esse pomar imenso, esse verde-escuridão que é preto até se anunciar algum verde de novo com suavidade da luz. Ficaram comigo as plantas e os animais selvagens que vivem em mim. 9 de março. é sobre, desesperadamente, sentir a sua falta; sobre as rotinas e cumplicidades; sobre as memórias que ficam e todas as vidas passadas e futuras que ganhei e que perdi ao (te) perder;
9- Em frente à Cartomante, que também era eu, vi uma mulher desesperada para conhecer o seu futuro; mas o verão também é tempo de lírios;
10- A carta: a cidade tem nome e eu continuei tentando.;
11- Em Celebração, me desaprendi de mim, me arrisquei, me irreconheci no espelho também. Mapeei tudo (tudo!) o que consegui com uma vista, mas esteve tudo absolutamente perdido. Nenhuma cumplicidade. E dar graças a uma jornada que não foi o fim: foi exatamente o começo e depois o meio e depois o começo e depois o meio e depois o começo.







Quase um ano depois, tive de ouvir a denúncia de que o meu livro é uma história — são histórias que contam uma história sobre perda. Tudo se perde e, mesmo assim, se avança. Se acredita, se dá a chance. Se abre, se vive.
Talvez seja isso também a esperança.
E chega a ser, de novo e mais uma vez e outra também, uma gigantesca piada de mau gosto. O texto que fugiu de mim durante quase duas semanas se escreveu quase-inteiro em menos de uma hora, em um horário de almoço qualquer de uma segunda-feira qualquer. Tantas datas exatas premonitórias para chegarmos a dias quaisquer.
De alguma forma, previ isso acontecendo, me avisei das minhas previsões e, mesmo assim, ainda me vi desamparada, como se não soubesse dizer de onde veio ou o que me atingiu. Como é ser arremessada em alto mar, sobreviver às tempestades e, ao chegar na praia, ainda pouco sã, mas totalmente salva — o que vem depois disso?
Descobri o que é o des-lugar. O que é o deslocamento, a despersonalização. E sabe onde me reconheci, onde foi que me encontrei? No outro. A minha salvação veio de um cardume formado por peixes que reconheço por alma e outros que não faço ideia de quem são, de que mares vieram.
(tudo uma grande piada de mau gosto)
Sabe o que é silenciar e não ouvir absolutamente nada, intuição nenhuma que te alcance? Descobri o que é isso, isso que não tem nome. Sabe o que é descobrir que o tempo simplesmente não cabe no relógio, nos dias? Descobri o que é isso também. Tantos atos revolucionários e tantas, tantas incompreensões de mim. Tudo para circular e espiralar e me encontrar no outro. Em você. Nisso e naquilo. Em uma humanidade.
Descobri, pra valer, o que é ser humana em pleno verão. Foi trágico, devastador, uma escuridão completa. Não recomendo a ninguém, na verdade. Porque ser humano é não saber. Simplesmente não saber. Em meio a premonições — a autopremonições, ainda assim, não saber.
É esperar demais das pessoas, do mundo, e descobrir que isso diz tudo sobre quem a gente é: tudo isso que a gente espera do-outro-da-vida-do-mundo: é tudo o que existe em nós. Sei esperar o melhor de ti simplesmente porque entrego o melhor de mim.
E isso é tudo porque não falta. Nada falta.
Aprendi a ter a ousadia de transformar meu próprio livro, minhas próprias palavras proféticas em um amuleto porque é comprovado e imortalizado em matéria viva-morta e em palavras vivas-vivas que elas me habitavam antes de tudo. Eu mesma me precedi — entende o quão primitivo somos? Primitivos de nós.
Não sei já sabendo. Faço as pazes com isso.
[talvez a vida seja uma grande piada de mau gosto; mas talvez só não tenhamos desenvolvido ainda o humor certo para apreciar a piada.]
E com o posfácio do livro, algo que estive lembrando diante de todas as coisas que se foram, das faltas:
Mas é também bonito esse respeito todo: o verão se retirando no seu último dia porque é tempo do outono já tomar o seu lugar.
Devemos nos lembrar sempre: as coisas que vêm estão sempre prontas para tomar o lugar das coisas que foram. Não há falta, não há vácuo.
Há.
O meu livro A menina que salvou os peixes está à venda no site da Editora Patuá e também na Amazon. E se você já leu, deixa uma avaliação lá, por favor? 🥲💙🐟
sabe, tem um conceito meio louco que é de profecia autorrealizável: é algo que só ocorre por conta do anúncio antecipado.