“tantos sentimentos contraditórios e violentos” - Clarice Lispector (Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, 1969, pág.13).
I.
Após semanas, me vi escrevendo com o corpo sem saber — e logo eu, que não domino muito as expressividades corporais.
Me vi — me vejo com histórias demais a contar, mas sobressaíram — sobressaem em mim as histórias a serem vividas primeiro. Me foi dada a chance de vivê-las com tanta certeza; e, por algumas vezes, até me foi exigido que seguisse dessa forma.
E lido constantemente com uma culpa enorme por ainda não escrevê-las, não contá-las (as histórias) imediatamente — eu coexisto em tempos demais, lições demais: ano após ano, me cobro a traduzi-las depressa em palavras mesmo sabendo que cada uma tem o seu tempo para criar corpo. Quando até eu tenho.
Quando me vieram essas palavras hoje, esse texto, foi como se tivesse voltado a pulsar em dia solar: ufa!, ainda vivo! — e fui tão resgatada, tantas mãos inesperadas me alcançaram nas últimas semanas, no último mês, e fui obrigada a revisitar minhas próprias aprendizagens, a reaprendê-las: há sempre uma mão estendida que nos alcança. E vi ainda que não adianta me (se) esconder: te encontrarão mesmo assim.
Felizmente, soube me agarrar a cada uma delas.


Acredito que todas as histórias que tenho comigo ainda serão contadas. Vejo-as tecendo a si próprias como se em panos translúcidos, tinta azul-preta suavíssima, quase imperceptíveis. Mas me é quase proibido tocá-las agora, antes da hora — seguirei então escrevendo com o corpo. Dando voz às cenas que vejo em sonhos. Literalmente.
II.
Depois de muitos meses sem maiores notícias, Gala Dalí me apareceu noite passada. Suspeito de que para relembrar meu compromisso com ela, algum pacto de alma que tecemos sem saber — a nossa união onírica.
Estávamos eu, minha irmã e uma amiga num piquenique no que parecia o alto de um monte, aos pés de um prédio antigo enorme, abandonado, com janelas imensas que marcavam cada um dos cinco andares, das quais quase todas as cortinas esvoaçavam. Tudo era coberto por uma aura verde e lilás, e eu dizia a elas:
— Foi esse o sanatório em que Gala morreu depois de ter sido internada.1
E eu então levantava e entrava no prédio, ciente de que era assombrado e de que eu não poderia passar dos primeiros dois andares, já que os espíritos realmente perigosos habitavam os andares de cima. Era como se eu conduzisse um tour pela construção contando a história de Gala para ninguém além de mim, procurando pelo seu quarto histórico no segundo andar. E então, em determinado momento, eu assistia acontecer uma cena de época e, por vezes, me tornava parte dela. Aos pés da cama onde dormia supostamente Gala (e supostamente eu), estavam dois homens com roupas de época, fumando charutos e discutindo dinheiro e balanços financeiros. Ao acordar, a mulher (que era Gala e que era eu) dizia aos dois para irem embora porque ela iria conferir as contas do dinheiro que era, na verdade, dela. Eles riam bem humorados, acostumados, já levantando, e diziam:
— Você sabe que a gente pode fazer isso pra você, né?
Ao que ela respondeu, acendendo um cigarro:
— Mas eu também posso, e só assim eu sei que elas estão certas.
III.
Como disse antes: estou vivendo todas as histórias no corpo [inadequação] e tudo acontece sem que eu tenha controle algum: minhas mãos secas borbulham em água, meu rosto denuncia os incômodos, a comida não me cabe, e é imperativo que o sol queime a minha pele.
tantos sentimentos contraditórios e violentos
Sem me dar conta, escrevi a minha própria profecia — tornei-me meu próprio Oráculo de Delfos. É imprudente me atrever a dizer que não sei onde estou: a história foi escrita pelas minhas próprias mãos.
Esqueci que já sabia.
IV.
No sábado à tarde, fechei os olhos e vi: uma infinitude de delicadezas me rodeando. O ar em cor de rosa e lavanda, tocado por infinitas pontas de dedos infinitos. Lá fora, o tempo roxo-cinza de tempestade de primavera. Mas, te prometo (!), rodeado de delicadezas. Me espantei até, porque era verdade: bastava fechar os olhos para ver.
Foi quando comecei a suavizar.
V.
Não há nada como a beleza da primavera, as sincronias de vida e a imensa alegria de testemunhar que a perfeição natural se mantém perfeita e proposital a olho nu — uma família de passarinhos fez ninho na minha caixa de correios e, do meu quarto no fim da casa, ouço os seus gritinhos de estarem vivos. Então, não há nada como a primavera. Mas quase não podemos enxergar o caos que é necessário para toda essa beleza se estruturar: se olharmos debaixo das cores das flores e debaixo das asas das borboletas e dentro dos ovos dos passarinhos, veremos: a escuridão e o lodo que existem numa caverna onde habitam tantos sentimentos contraditórios e violentos — a nossa hecatombe.
As cores são celebratórias, estandartes da vitória sobre a nossa própria miséria.
Semana retrasada, dois passarinhos entraram no meu quarto e logo saíram: primeiro um e depois o outro. Quando o primeiro chegou e pousou na janela, tive a audácia estúpida de pedir mentalmente que não entrasse: imagina, um passarinho preso no meu quarto. Não fez mal, ele mesmo saiu porque quis. Vários minutos depois, com a chegada do segundo, vi que ambas as visitas foram absolutamente propositais. No dia seguinte, vi entrar e sair uma borboleta branca. Dois dias depois, numa manhã cinza e chuvosa, encontro uma pena amarelíssima brilhando no chão a caminho do trabalho. Quase uma hora depois, um João-de-Barro pousou bem ao meu lado, na janela onde fica a minha mesa no trabalho, separados apenas por milímetros de vidro.
Os anúncios claros de que estou pronta agora para o verão. Bem a tempo.
É sempre um milagre estar aqui.



VI.
É quase verão e algo muito sagrado começou a (me) acontecer. Muitas premonições e todas quase imperceptíveis. Faço que não as vejo e confio cegamente.
Se contasse as histórias que me trouxeram até aqui, juro, ninguém acreditaria.

O meu livro A menina que salvou os peixes está à venda no site da Editora Patuá e também na Amazon. E se você já leu, deixa uma avaliação lá, por favor? 🥲💙🐟
Diferente da trama criada pelo meu mundo onírico, na história real, Gala não foi internada num sanatório e não morreu dessa forma. Mas, se quiser conhecer a história real dessa mulher contraditória e magnífica, estou publicando um ensaio dividido em oito capítulos. Você pode ler o primeiro capítulo aqui.
Esta edição teve uma escrita especialmente bela, Marília.