Olivia se foi no último dia 9 de março. Depois de pouco mais de uma década juntas, fui obrigada a encarar a perda que eu sempre temi acontecer mas que, de alguma forma, em alguma inocência que sempre morou em mim, nunca realmente acreditei que fosse possível. Eu não sei exatamente quando comecei com a brincadeira de dizer que a Olivia viveria pra sempre, mas sei que, no instante em que recebi a notícia da sua morte, entendi que todas as partes de quem eu era realmente acreditavam nisso. Como é possível? E imediatamente a resposta: da mesma forma que é possível ainda não conseguir entender ela não existindo ao meu lado todos os dias.
Escrevo esse texto na noite do dia 13 de maio, mais de dois meses depois da morte dela. E eu ainda não sei o que dizer, na verdade. Sei que preciso falar alguma coisa porque me vejo somatizando essa ebulição de saudade e incredulidade, porque é urgente dizer que sinto muito a falta dela todos os dias desde então. Nada suavizou, sabe? Eu, sim, suavizei; mas a saudade não. A saudade permanece intocada, como um móvel que permanece no mesmo lugar quando você viaja só para encontrá-lo inalterado, como se houvesse voltado no tempo para o momento em que saiu. Há algumas horas, senti minha mão flutuando no ar procurando por ela e entendendo que nunca mais a encontraria. E isso foi desesperador. E eu ainda a vejo em todos os lugares em que ela já não está e eu não sei como não fazer isso. Não quero saber, na verdade. Eu quero que continue assim por agora, ainda que contraintuitivo, ainda que sem explicação, ainda que não doa menos. Não acho que vá doer menos. Não sei se quero que doa menos.
E penso vários pensamentos. Ainda não sei o que tatuar em homenagem a ela. O pote de comida com o nome dela ainda está no mesmo lugar. Ela ainda é o meu papel de parede do celular, o mesmo dos últimos 5 anos porque nunca tive coragem de trocar e continuo não tendo — penso, então: vai chegar o momento em que vou decidir trocá-lo? Qual será a sensação? Vai vir alguma leveza ocupar o lugar? Outra coisa: agora consigo comer os alimentos que não conseguia comer nas primeiras semanas porque nós dividíamos toda comida. E aí lembro sempre que ela me acompanhava em toda refeição que eu fazia. E como vai ser quando chegar o dia do aniversário dela? E quando eu for escrever sobre ela, como vai ser? E quando ouço os cachorros da rua latindo, minha mente ainda completa o latido dela: eu reconheceria o som em meio a todos os latidos do mundo. Não há ninguém que falasse a nossa língua. Penso também: agora que ela se foi, fiquei com o seu dom de reconhecer as pessoas com más intenções? E tenho todo o trabalho de reimaginar a vida que havia desejado pra mim: ela estava em cada um dos cenários, em cada rotina, em cada lugar. Em todo lugar.
E eu não espero mesmo que ninguém entenda. Não mesmo. E parte de mim fica alegre com isso porque é algo que é só meu: eu não preciso explicar. É tão grande, tão permanente, tão incondicional — é intocável.
Os últimos dois meses me entregaram as semanas mais difíceis da minha existência. De cara, fui arremessada no entendimento de que uma parte gigantesca da minha vida girava em torno dela, em torno do quão sólida era a nossa conexão. Vejo agora que a Olivia era a parte minha que era inquebrável. Eu sempre adiantava a volta das minhas viagens por sentir saudade dela. Era certo de que nada perturbaria o meu sono porque ela guardava a porta do meu quarto de todos os perigos, todas as noites. Ela me alertaria para as minhas ansiedades, somatizaríamos tudo juntas: eu no meu corpo de mulher, ela no seu corpo de cachorro. Meu futuro tinha a imagem dela projetada em todos os cenários — eu juro, era tudo tão garantido.
E eu já perdi familiares e pessoas próximas antes, já havia reconhecido a morte como algo irremediável. Mas, de alguma forma, a infinidade de possibilidades que a vida sempre me mostrou criou um contraste assustador com a irreversibilidade da morte: é verdade, é a única coisa da qual não se volta atrás. Você não vai ter de volta o que se foi, não há espera alguma de que as condições mudem porque elas nunca mudarão. E se isso é tão óbvio e se eu sabia desde o início, como é que eu só fui saber disso agora? Saber, saber de verdade. Internalizado na alma. Só soube disso agora. A morte é o móvel que permanece.
E sabe o inacreditável? Essa mesma vida que me garante as infinitas possibilidades foi tão, tão incomparavelmente generosa comigo. Eu não pude me revoltar com as irreversibilidades do que ela me tirou nem por um segundo: tamanha a ciência da generosidade disso que podemos chamar de Deus, de Universo, de acaso, de nada. Eu tive uma semana inteira de um fúnebre Carnaval que me permitiu passar cada dia do feriado colada com ela: eu dormia e acordava chorando, desesperada com a possibilidade de encarar o que descobri ser o meu maior medo, e a Olivia estava ali comigo: do meu lado, em cada hora de cada um dos dias, sem demonstrar doença alguma, com o mesmo olhar pra mim de uma década inteira. A vida me permitiu começar a viver o meu maior luto amparada por ela. E mesmo depois da cirurgia, ainda tive a chance de me despedir dela um dia antes da sua partida: eu ganhei a paz de saber que ela soube que eu estive com ela até o último momento. Naquele sábado, algo em mim sabia que era a despedida e algo nela sabia também. Nós tivemos tudo: a última conversa, os últimos olhares, o último ir ao encontro uma da outra, o último rabo abanado ao me ver. Eu ganhei tudo mesmo quando perdi tudo.
E sei agora que não quero nunca terminar esse texto, não quero nunca deixar isso ir. Eu quero que a Olivia seja o móvel que permanece em mim. Quero desesperadamente.
A Olivia era a parte de mim que era inquebrável. E ela se foi. É irremediável, não se pode voltar atrás.
E tudo ao que eu me agarrava com tanta força para não deixar ir: vejo agora deslizando por entre os meus dedos. Como areia, como fitas de cetim sendo puxadas, como uma música que flui nas teclas do piano em um recado da alma. De alguma forma, houve uma libertação: após uma dor tão grande, após um terror tão grande, serei assustada pelo quê? No topo dessa montanha, o horizonte do mundo me mostra que já não há mais como subir: todas as demais montanhas estão abaixo de mim. A libertação das montanhas.
O título desse texto era para ser Olivia., com ponto final. Errei a tecla e digitei uma vírgula. Fez mais sentido assim.
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Deixo um abraço apertado assim como essa linda prova de amor à Olivia me abraçou.
Sinto muitíssimo, querida 💔