teimosos venceremos
sobre crescer ao contrário, morar debaixo de uma pedra e a vida no Instagram
Acho que cresci ao contrário. O meu sobrinho está aprendendo a andar, e logo que começou a pegar alguma firmeza nos pézinhos, quis começar a correr, acelerar o passo, chegar logo ao outro cômodo da casa, ao próximo mundo. E eu entendo, sabe? Eu gosto de andar rápido por aí: meu passo é longo e eu não tenho pressa. É contraditório, mas não muito. Eu gosto de andar, chegar ao destino é detalhe.
Talvez seja um pouco injusto me comparar a um bebê de 1 ano descobrindo o que é o mundo mas, me adultificando nos últimos anos (e ainda descobrindo o que é o mundo), me vi ficando cada vez mais lenta nos meus processos e pensares. Passei a preferir tudo muito devagar, uma coisa de cada vez, e com muita facilidade me pegava agitada quando aumentavam as informações — ainda me pego. Aos poucos, fui aprendendo a permitir que as coisas acontecessem no meu tempo para que eu não perdesse os prazeres: não costumo responder mensagens antes de chegar ao trabalho, os trajetos de ônibus e a pé são momentos de ouvir músicas e podcasts sem nenhum incômodo, as sessões de filmes sem pausa, as refeições feitas sem nenhuma tela. E lembro bem que, desde criança, nunca tive a habilidade de fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mas foi só nos últimos anos que abri espaço para essa não-habilidade existir. A vida ficou mais fácil assim. O meu corpo pedia, eu obedecia. A mente pedia, eu obedecia. O coração pedia, eu obedecia.
Mas eu sei obedecer somente a mim.

Eu criei o léxico azul um mês antes de descobrir que o meu livro seria publicado. A única coisa que me adiou começá-lo foi a necessidade de criar um novo Instagram1 para começar a divulgação do meu trabalho, uma vez que utilizar a minha conta pessoal sempre esteve fora de cogitação pra mim. Quando iniciamos o processo de publicação do livro, não pude mais adiar a tarefa porque precisava da plataforma para, pelo menos, alcançar o primeiro público. Me conhecendo muito bem, antes de entrar na empreitada, estabeleci comigo combinados muito claros:
o Instagram não era o meu trabalho, então não podia exigir a obrigação do meu foco e energia;
eu não me colocaria para criar nada que eu realmente não quisesse;
eu não me dedicaria a criar conteúdos pra lá;
eu manteria a restrição de uso diário do aplicativo em 50 minutos.
Ditos os ditos, criei a conta do léxico azul e passei a alimentar conforme eu podia: divulgava os textos novos nos stories, compartilhava os registros da FLIP e dos eventos que eu participava, eventualmente postava alguma foto que também tinha postado na minha conta pessoal. E eu sei que tudo isso parece pouquíssimo, praticamente nada se comparado a como as coisas acontecem por lá — mas pra mim foi muito. Muito mesmo, ao ponto de eu precisar ceder a mim.
Nos últimos dias, após a festa de lançamento do meu livro em Campo Grande, cedi ao sutil incômodo que me acompanhava há mais de um mês e sentei comigo para entender. O momento de tomar as decisões difíceis e inadiáveis. As decisões inegociáveis. A hora de desistir daquilo que eu nunca quis, em primeiro lugar.
O motivo principal por trás disso é o meu viver, a graça do meu dia a dia. Eu passei a perder a vontade de tirar fotos porque, depois de registrar alguma coisa, começou a existir o pensamento “depois eu posto”. E eu aproveitei a FLIP, mas penso que talvez tivesse aproveitado um pouco mais se não estivesse tentando me lembrar de fazer fotos e videos para mostrar o que eu estava vivendo — no fim da viagem, um mau humor enorme me consumiu e eu mal aproveitei os últimos dias no Rio de Janeiro, tamanha a minha necessidade de introspecção. E toda vez que eu postava algum texto aqui no léxico azul, vinha a tarefa de divulgar nos stories, e lá ia uma manhã inteira de copia e cola e edita e alinha uma imagem que duraria somente 24 horas no feed. E mais todas as horas editando videos, escrevendo legendas, repostando nos stories. E eu não faço nada pela metade: me preocupo com criar coisas de qualidade, das quais eu me orgulhe e que, principalmente, sejam sinceras. E eu estou feliz com o que criei até aqui e com tudo o que aprendi (agora sei editar videos!), mas todo o tempo necessário para tudo isso drenou a minha energia para fazer coisas muito mais importantes pra mim, como ler meus livros e criar coisas mais elaboradas. Os tais inegociáveis.
O outro grande motivo é mais subjetivo: eu não acredito nesse “poder” das redes sociais. Melhor: eu não acredito em dar o poder às redes sociais. Há algumas semanas, o Chris postou uma note sobre publicar um livro com uma editora independente e a necessidade de investir financeiramente no seu próprio trabalho, e eu comentei sobre o investimento de tempo e energia no processo de publicação, que envolve, acima de tudo, a divulgação. Pra mim, estava (e está) sendo complicado encontrar o equilíbrio entre investir na divulgação e fazer o que é de fato o meu trabalho como escritora, que é criar (à parte do trabalho que paga as contas). Mas eu não sou fã das redes sociais — na verdade, sou revoltada com elas, com o lobby das big techs e afins2. Os algoritmos são invencíveis e, pra mim, é irrelevante sequer tentar criar algo diferente dentro delas porque soa como ir a um lugar que eu não gosto, ou aprender algo que não me interessa, ou frequentar uma igreja cuja religião eu não me identifico. O famoso forçar a barra. Não faz sentido algum pra mim. Então, talvez seja melhor eu me dedicar a explorar outras formas de alcançar os meus objetivos porque acredito que é impossível criar algo novo se você está dedicando parte da sua energia para manter algo no qual você não acredita, só por conveniência.
E acho importante dizer que tudo isso é sobre a forma como eu, Marília, funciono. Como a minha mente processa as coisas, como eu me sinto bem ou não diante disso. É sobre a minha trajetória para encontrar o que funciona para mim, para o que eu quero fazer e criar. Você não vai aprender nada sobre mim ou sobre a minha vida na minha conta do Instagram, e eu não vou aprender nada sobre você através da sua. Mas é garantido que nos entenderemos através das palavras, sejam escritas ou faladas ou na forma que vierem: você vai entender o porquê de eu não acreditar nas redes sociais e eu vou entender o porquê de, talvez, elas funcionarem muito bem pra você. E olhe a grandeza disso: vamos nos entender!

Relendo Só garotos, da Patti Smith, me peguei pensando sobre os primeiros anos dela em Nova York com o Robert Mapplethorpe, quando os dois ainda não eram artistas consagrados. A maior preocupação deles era com o criar, com explorar seus talentos e diferentes técnicas, com tudo o que poderiam desenvolver a partir do mero desejo de tornar seus trabalhos cada vez melhores para que então, um dia, ocupassem os lugares que gostariam de ocupar, fossem em palcos, estantes ou galerias. Era pela necessidade da arte, da criação, porque esse era o único jeito possível. E à parte das duras realidades dos anos 60 e 70, enxerguei nessa vontade a minha própria — e então, a linha sagrada: eu sou escritora e quero escrever. Quero explorar todos os rascunhos iniciados, as pesquisas feitas nos temas sobre os quais eu quero muito escrever, as histórias que eu quero contar. E eu preciso garantir a mim o direito de ocupar o espaço que já conquistei comigo. E não falo aqui sobre o espaço de publicar um livro porque escrever um livro não torna ninguém escritor, mas o ato de escrever, sim.
toma para ti vida que te é mais pertencente.
Então, eu decidi não coexistir as ações que não são minha prioridade — eu já coexisto em coisas demais. E tudo o que escolhemos é também aquilo do que abdicamos; então, hoje, se eu escolho me dedicar ao espaço que construí aqui, me é necessário abdicar de tentar me fazer presente por lá, no Instagram. Eu não vou deletar a conta e desaparecer, mas vou me reservar o direito de aparecer quando tiver vontade, pra divulgar um evento, uma experiência, para responder às mensagens com carinho. Mas garanto a mim que é seguro tirar das costas o peso que não preciso carregar.
E eu não acho que as redes sociais sejam ruins, não mesmo. Eu conheci outros autores por lá, que logo se tornaram amigos distantes que fazem tudo isso soar menos solitário por saber que outras pessoas também estão vivendo o mesmo momento que eu. Também foi por causa da divulgação do meu evento de lançamento que uma pessoa que eu não conhecia apareceu para conhecer o meu livro, o que acabou sendo uma das melhores surpresas daquela noite tão especial (abraço enorme, Andressa Nunes 💙). O Instagram também foi o lugar que, há muitos anos atrás, me aproximou da fotografia, e tirar fotos se tornou a minha forma de prestar atenção no mundo: enquadrar as cenas, as luzes, as belezas. Na minha conta pessoal, criar os álbuns é um hobby divertido porque a curadoria feita ali, a legenda escolhida, as cores, tudo em conjunto me conta a história de um momento, uma semana, uma viagem — é sobre contar histórias visuais pra mim e isso era divertido. E eu tentei levar isso para a minha conta pública, mas não soou a mesma coisa: soou como aproveitar uma criação para cumprir uma obrigação. E eu sou péssima com obrigações autoimpostas.
Então, aos poucos, fui alterando algumas percepções, desconstruindo alguns “sensos comuns” sobre as redes sociais numa tentativa de tomar as coisas pelo o que elas realmente são:
você não se informa pelas redes sociais: a quantidade de informações é tão grande que é impossível lembrar o que se viu no dia anterior;
hoje, é muito difícil se deparar com uma diversidade, no sentido real da palavra: o feed é maçante, entediante ao extremo — o algoritmo padroniza tudo e você acaba com uma coleção infinita de fotos iguais, temas iguais, conteúdos iguais;
as notícias “te consomem” porque, nas redes sociais, elas são sensacionalistas, criadas para te causar esse turbilhão de sentimentos, horror, desespero, para estimular algum engajamento (ainda que negativo) e te afastar de realmente entender aquilo a fundo: nos últimos dois anos, aprendi a me atualizar fazendo isso de forma deliberada, como acompanhando podcasts semanais, lendo artigos e reportagens mais cuidadosamente elaboradas e não sensacionalistas, acompanhando jornalistas de confiança, assinando uma revista mensal. Eu seleciono momentos do meu dia em que isso é bem vindo e respeito quando o dia pede algo diferente. E tudo bem: eu não perdi nada;
você não se atualiza sobre os seus amigos assistindo aos stories deles: um dia, parei para olhar o feed de um dos meus melhores amigos, alguém que eu conheço de alma, numa tentativa de descobrir se ali eu poderia ver o que eu sabia que ele estava vivendo. A resposta foi não, eu não conseguia. Aquilo era um recorte de quem ele era, o que tornava a minha própria conta um recorte de quem eu sou. Melhor ainda, um recorte de como enxergamos o nosso mundo. E isso não é ruim, nossas formas de expressão ainda estão ali, nas fotos que tiramos e naquilo que mostramos. Mas não estamos ali atualizando uns aos outros sobre o que estamos vivendo — estamos, no máximo, compartilhando frações de momentos em fotos.
Há alguns anos, meus amigos começaram a piada de que eu sou o Patrick-Estrela e moro debaixo de uma pedra. Isso nunca perde a graça pra mim, mas a zoação surgiu por um motivo. Minha resistência com as redes sociais começou em 2020, quando assisti ao documentário (meio dramático) O Dilema das Redes (2020), da Netflix. Eu fiquei desesperada ao ouvir as pessoas que criaram as plataformas que utilizamos hoje falarem com todas as letras que não tinham mais controle sobre aquilo e sobre como foram aperfeiçoando as ferramentas para nos manter presos a elas. E isso me impactou muito porque a liberdade sempre foi a coisa mais importante pra mim, algo do qual eu não tenho intenção alguma de abrir mão. Então, ouvir aquelas pessoas que eu não conheço confessarem que grupos de imenso poder estavam fazendo o possível para controlar o que eu via, como eu reagia, o uso do meu tempo, a minha atenção, os meus gostos — eu imediatamente recuei. Nunca mais voltei pro Twitter, passei um ano fora do Instagram, e tudo até entender como utilizar essas ferramentas (que são, de fato, ferramentas) de um jeito que funcionasse pra mim. Porque eu não acho que exista o tal do “cronicamente offline”, uma vez que isso tem potencial para se tornar uma autoprivação do acesso à informação que a internet e as tecnologias ajudaram a democratizar. Mas eu acredito que tem que haver um jeito de utilizar delas sem entregar o controle da sua rotina e da sua vida nas mãos de plutocratas narcisistas — mesmo que essa resistência seja pela teimosia.
E eu acredito que a teimosia é sempre um ótimo lugar por onde começar uma resistência — uma revolução.
Então, talvez eu realmente tenha crescido ao contrário: desacelerando a fome de mundo porque há tempo para chegar ao próximo cômodo. Mas ainda estou crescendo. E mesmo que eu more debaixo de uma pedra, ainda estou crescendo. E crescendo, meus passos ficam mais longos — ainda ando rápido, mas não tenho pressa.
O meu livro A menina que salvou os peixes está à venda no site da Editora Patuá e também na Amazon. E se você já leu, deixa uma avaliação lá, por favor? 🥲💙🐟
aqui eu falei só sobre Instagram porque é a única rede social que eu uso (Pinterest e Substack eu meio que desconsidero desse pódio) — mas sinta-se à vontade para aplicar à rede social de seu interesse.
há um mês, comecei a escrever um ensaio sobre tecnologias de uma forma mais ampla (big techs, IAs, automatizações, carros que se dirigem sozinhos, e afins) e que ainda vai ser publicado — mas esse texto mais pessoal que você lê/leu aqui me pediu educadamente para passar na frente, e eu deixei.
É absurdo o tanto de pressão que nos colocamos para estar em determinado meio até percebermos, talvez até por acaso, que não é bem assim.
E adoraria conversar com você sobre essa relação entre a fotografia e aguçar o olhar para a cidade. É um tema bastante querido para mim.