“toma para ti vida que te é mais pertencente, […]." - Hilda Hilst (Tu não te moves de ti).
Minha paixão pela Hilda já vem de alguns anos. Começou com algumas crônicas, que desembocaram numa antologia inteira (Podem me chamar de louca, 2021), e logo já estava caidinha pelo seu humor ácido, lirismo perfeitamente desconcertante e retrato social afiadíssimo, destemido. Mas Tu não te moves de ti (1980) me pegou de surpresa: primeiro, pelo título, que me soa como um encantamento quando dito em voz alta; segundo, porque eu não fazia ideia do que esperar. Eu já havia lido a sinopse e vários comentários a respeito, mas simplesmente não conseguia entender o que era esse livro. E quando finalmente cheguei a ele há alguns meses - ou melhor, quando ele chegou a mim -, imaginei que isso deve acontecer com todo mundo: não tem como entender porque não tem como explicar. Tu não te moves de ti é uma experiência em todo o sentido da palavra, e a qualquer um que leu, cabe apenas recomendar.
toma para ti vida que te é mais pertencente.
E na minha experiência, essa frase me perseguiu desde então. Outro encantamento. Ou, na verdade, a quebra de um outro encantamento, um que é mais coletivo e menos pessoal: se dedicar àquilo que você deveria fazer ou que deveria querer para si.
Em dezembro de 2023, eu formei em Administração. No ano anterior, havia me formado em Processos Gerenciais e, dois anos antes disso, saído do curso de Arquitetura e Urbanismo no 5° semestre (então, se alguém estiver contando, mais meia graduação rsrs). Após seis anos de muitas faculdades, eu estava saturadíssima da vida acadêmica, e mesmo que já tivesse um emprego do qual ainda gosto muito, todo o turbilhão do pós-formatura me alcançou e eu assumi que precisava fazer outra coisa. Trabalhar em outro lugar, ter novas atividades, conhecer outras áreas. Eu não estava desgovernada na minha busca porque minhas experiências profissionais já tinham me mostrado o que funcionava e o que não funcionava pra mim - eu já sabia que trabalhos corporativos definitivamente não são o meu perfil. Mas adivinha: acabei participando do processo seletivo para uma grande empresa de consultoria empresarial, uma das famosas Big Three.
Quando decidi fazer isso, eu não sabia exatamente o que era ser um consultor, mas me animava a ideia de encarar problemas complexos de diferentes áreas. Eu também não sabia que a preparação para esses processos seletivos era equivalente a de um vestibular, então eu tinha dois meses para descobrir o que era aquele mundo e aprender como funcionavam as provas, cartas, currículos e, principalmente, as rodadas de entrevistas com cases de mercado dificílimos, a grande cereja do bolo. Ignorando tudo isso, aproveitei todo o tempo que eu tinha para estudar os conteúdos e peguei gosto por resolver aquelas questões, ainda que às vezes eu congelasse em algum case que conflitava com os meus valores pessoais (ajudar uma empresa de tabaco a crescer no mercado está longe de ser um objetivo meu). Fui passando todas as fases desse jogo como pude: estudava o máximo que conseguia sem ultrapassar meus limites físicos e mentais (a maior lição dos meus anos de vestibulanda), e não me deixava perder de vista que ainda lidava com lutos familiares recentíssimos. Eu dava o melhor de mim, mas nada além disso: há o melhor e há o excesso, e essa era uma linha que eu não estava disposta a cruzar.
Antes de iniciar o case da segunda entrevista, conversando com o gerente sênior sobre o meu currículo e a empresa, ele falou uma frase que soou como um bichinho me mordendo debaixo da pele:
- “[…] geralmente conseguimos um equilíbrio, mas, você sabe, não é sempre um trabalho das 09h às 17h.”
E, dessa penúltima etapa, não avancei.
A surpresa veio na forma como eu recebi a notícia porque, diferente de outras rejeições, eu não fiquei chateada dessa vez. Aquela preparação tinha apenas reforçado a minha competência profissional e a minha capacidade de aprender tudo aquilo. Eu tinha a certeza de ter dado o melhor de mim e, até que enfim, isso foi o suficiente.
Mas, diante dessa porta fechada, eu estava de volta ao mistério do que fazer dali pra frente. Eu pensava muito sobre o dilema da Esther na passagem da figueira em A Redoma de Vidro (1963), da Sylvia Plath:
Eu estava “sentada entre as raízes” da minha figueira e me sentia repuxada por cada um dos figos de tudo o que eu amo fazer, do que era possível e do que sempre pareceu inconciliável - como é inerente a todo ser humano que caminha na Terra, meus gostos às vezes se contradizem e isso me consumia. Ali, eu tinha a fome de um pomar inteiro. Mas foi só quando consegui um olho mais atento que percebi que, dentre todas as possibilidades, a escrita era uma constante. E isso me lembrou algo que eu havia escrito para o meu livro meses antes:
“Mas, me digam, se soubessem que teriam apoio incondicional, escolheriam qual direção se nada mais existisse à sua frente?” - Trecho do conto A carta.
A resposta para a minha própria pergunta veio tão fácil quanto o respirar involuntário: se tudo me fosse garantido, eu escolheria a escrita sempre.
Então, o que aconteceria se toda a energia que dediquei a algo que eu achei que deveria querer e fazer - se todo aquele tempo de preparo fosse direcionado ao que eu realmente gostaria de fazer até o último dia da minha vida, o que eu teria a perder? E ainda melhor: o que eu teria a ganhar?
toma para ti vida que te é mais pertencente.
E eu tomei.
Vi que tinha tempo e usei dele para me dedicar a isso como se tudo já estivesse garantido: trabalhei em pesquisas durante semanas para redigir um ensaio para uma revista e senti orgulho do que entreguei; escrevi materiais para concursos literários sobre assuntos completamente fora da minha zona de conforto (pelo amor de Deus, eu me diverti escrevendo sobre futebol); desenvolvi ensaios sobre temas políticos e sociais que me ocupavam a mente; pesquisei editoras para a publicação do meu primeiro livro; coloquei de pé essa página aqui. E, claro, não fiz nada disso de forma exclusiva porque não sou herdeira: eu reconheci o fato óbvio de que já tenho um trabalho que eu gosto, que me sustenta e, principalmente, permite que eu me dedique a outras coisas, que viva uma vida fora dali. De certa forma (e em todo o meu privilégio), percebi que tenho o espaço e o recurso que a Virginia Woolf definiu em Um teto todo seu (1929) como as necessidades básicas para uma mulher se dedicar à escrita e à criação (e isso é assunto para outro ensaio) - então, nesse momento, talvez eu pudesse apenas aproveitar onde eu estava para construir onde eu gostaria de estar.
Não é simples escolher um figo e decidir por uma direção - toda escolha é também uma abdicação de tudo aquilo que não escolhemos. É um salto arriscadíssimo e que assusta porque não vivemos em um The Sims, e diante das CNTP da vida real, nenhum apoio incondicional nos é garantido em momento algum. Mas, em toda a sua sabedoria, penso que a Hilda tentou abrir nossos olhos para uma outra sutileza: não é fácil tomar para si a vida que nos pertence; mas é mais fácil do que insistir naquela que não.
Muito obrigada por ler o léxico azul 💙
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