Há alguns meses, voltando do almoço, passamos de carro em frente à Praça do Preto Velho e vi uma galera jogando bola na quadrinha:
— Chega a dar saudade da adolescência: sair da escola, jogar bola na praça em pleno sol de meio dia antes mesmo de ir pra casa almoçar, se ocupar com as paquerinhas ali...
E três segundos depois, o senso de realidade:
— Nossa, Deus me livre, coitados, a adolescência é horrível!
Dirigindo, Danis riu e questionou o porquê.
— Como assim, “por quê?”? Por acaso a sua adolescência foi tranquila?
— Ah, foi nada de mais.
— Como assim “nada de mais”, Daniel? Nenhuma pressão para decidir o futuro, a faculdade? Crise de identidade? Puberdade? Se apaixonar pela primeira vez e sofrer como se fosse o fim da vida?
Ele me respondeu com uma risada e eu mantive a minha incredulidade.
Nessa última sexta-feira, refazendo o caminho pela praça na volta de outro almoço, notei a mesma cena, dessa vez com outros protagonistas, e foi inevitável lembrar daquela conversa — mas essa memória retornou com um gostinho de inveja saboreado tão à distância que quase me passou despercebido.
Sendo sincera, acho que destilei, sim, alguma inveja daqueles adolescentes. Existe uma ingenuidade, uma imensa liberdade em se ter aquela quadra malcuidada pela prefeitura, um campinho de chão, ou até mesmo uma quadra mais ajeitadinha em algum condomínio fechado — é exatamente aquele momento na vida em que esses espaços são os mais importantes do mundo. O sentimento de que não estar naquela quadra com os amigos é o equivalente a perder um mundo inteiro, uma vida inteira acontecendo em uma tarde.
Porque, naquela mesma sexta-feira mais cedo, o futebol no meu mundo tinha sido comentar com um colega de trabalho sobre o depoimento da Leila Pereira à CPI da manipulação de jogos e apostas esportivas — o seu olhar meduseante em direção a um senador fazendo mais um comentário machista a ser adicionado à imensa lista de outros tantos que ela já ouviu ao longo da sua carreira. Também falamos sobre mudar o nome de batismo de estádios consagrados vendidos a megaempresas e sobre uma irritação profunda com jogador ex-craque que escolheu jogar no time dos presidentes da Câmara e Senado na missão de alcançar o mais exemplar desserviço público em termos de colapso ambiental via privatização de áreas de praias públicas. O futebol no meu mundo adulto é ouvir o meu irmão caçula comentar nostalgicamente com os motoristas de Uber sobre a garra que os jogadores tinham e hoje em dia não têm mais. Então, são nesses momentos em que penso que, talvez, a garra perdida tenha ficado no campinho.
É, acho que fui mesmo tomada por uma inveja tremenda da adolescência. De repente, me vejo querendo viver tudo de novo: o descontrole hormonal, a revolta pela revolta, o deslocamento social, as oscilações de voz da puberdade, os sentimentos de fim do mundo — me devolve até as espinhas no rosto, porque o estresse de hoje me dá rugas e cabelo branco.
Quero muito o mundo do campinho de terra, quero que o meu maior inimigo seja o time do bairro vizinho. O meu chinelo pode ser o nosso gol e eu posso até acreditar que o Jorge Ben Jor cantou Fio Maravilha em minha homenagem. Me deixa paquerar capitães de time — de qualquer time. Vamos rachar a Coca depois do jogo porque hoje eu tô rica com os dois reais que ganhei do meu avô no domingo passado.
Por favor, faz o próximo retorno, Daniel — me deixa naquela praça.

Escrevi essa crônica para o 3° Concurso de Crônicas do Museu do Futebol e foi um dos trabalhos mais divertidos que eu produzi esse ano. Futebol não é a minha área, mas foi muito curioso me propor a escrever sobre algo tão fora da minha zona de conforto, porque me surpreendi ao perceber que enxergava algo daquilo no meu dia a dia, mesmo que não me desse conta. Um lembrete de que a gente nunca sabe onde mora a próxima história — precisamos de abertura de olhos e de espírito se quisermos sempre encontrar algo para nos maravilhar.
E ainda, pesquisando uma imagem para ilustrar a crônica, acabei encontrando uma reportagem da Elle francesa sobre as pioneiras do futebol feminino, com várias imagens históricas das primeiras partidas e dos primeiros times formados por mulheres. Também encontrei uma matéria super interessante da CNN Brasil sobre o surgimento do futebol de várzea em São Paulo e a sua influência sociocultural na expansão e consolidação desses espaços que iniciaram bairros da cidade e alguns dos clubes profissionais, como o Corinthians. Alguns espaços históricos ainda resistem ao fantasma da especulação imobiliária paulistana, mesmo que a custos de grandes brigas com o planejamento urbano municipal.
Práticas como o futebol de campo se instalaram onde o preço da terra ainda não havia subido tanto, enquanto nas áreas centrais surgiram quadras mais compactas e privadas.
“A urbanização confronta os usos da várzea por uma diretriz de adequação da modernidade, de tornar funcional e fazer fluir. Por isso acho que a história de São Paulo guarda uma crítica bem importante, política, sobre o futebol, e guarda também aspectos de formação de personalidade, de sentimentos”, diz a professora Odette Seabra.
Ao se mudar para as periferias, essa população levou “a experiência de se relacionar com as pessoas, com o espaço e o esporte”, aponta Diana Machado.
Isso porque, entre os sentidos de ser varzeano, não estava apenas a margem do rio ou o esporte. “É dentro desses espaços que você encontra paquera, dança, samba, rock, faz uma festa no final do ano”, conta a pesquisadora Aira Bonfim, que atuou no Museu do Futebol.

Na sexta passada foi o lançamento do meu livro A menina que salvou os peixes lá na FLIP. A verdade é que ainda estou processando tudo o que me aconteceu desde então, porque foram duas semanas muito agitadas e eu precisei de um tempo para me situar no meu corpo e nas minhas emoções. Foram dias muito mágicos e cheios de histórias, cheios de encontros, e eu quero fazer jus a tudo isso — compartilhar tudo de um lugar sincero e dedicado.
Estou preparando o material contando como foi o lançamento, a experiência da minha primeira FLIP e algumas das aventuras vividas por lá. Eu voltei inspirada a falar sobre muita coisa, revendo outras tantas e cuidando dos detalhes para o lançamento do livro aqui em Campo Grande/MS, que vai rolar na primeira quinzena de novembro.
Mas tudo a seu tempo de vir ao mundo — e ainda bem.
A menina que salvou os peixes está em pré-venda no site da Editora Patuá, e você pode encontrá-lo aqui.