off the menu: FLIP 2024 - Parte II: amores-paraty, gafes jornalísticas e outras anedotas
uma história em três capítulos.
A Parte I desse texto você pode ler aqui.
A melhor parte da FLIP é sentir a magia de habitar um universo que só se imaginou em sonho. Eu sempre vivi a literatura, mas a verdade é que esse é um mundo um tanto quanto solitário para se viver. Se, por um lado, construímos algumas relações especialíssimas a partir dela, a leitura ainda é uma experiência individual muito forte: mesmo quando dividida, ela encontra a gente por dentro primeiro. A escrita mais ainda. Pra mim, a literatura acontece primeiro no nosso mundo para depois encontrar os próximos. Mas a FLIP é uma inversão dessa ordem.
Viver a FLIP é testemunhar uma cidade inteira voltada a celebrar a leitura e a arte. São dias de encontrar mundos-fora dentro de um mundo-nosso: os encontros, as paisagens, experiências, tudo isso são histórias acontecendo dentro da história maior que é a cidade histórica de Paraty. A FLIP é uma vida inteira a ser vivida em alguns dias, seja você da literatura ou não. (e eu penso que todo mundo sempre é.)
I. Paraty: para ti, apenas amores
Quando eu era criança, os gibis da Turma do Sesinho foram leituras que eu lembro de refazer mil vezes. Dentre as edições mais memoráveis, lembro de um dos desenhos da Vida de Abelha, em que se comparava quando uma abelhinha despejava o mel numa garrafa com cuidado e outra com desleixo e desperdício, imagem que ainda me volta vez ou outra quando encho uma garrafa. E outra edição, muito mais marcante pra mim, foi a d’A Estrada Real, em que a turma fazia uma excursão para conhecer a história das estradas de escoamento dos ouros e pedras mineradas durante o Brasil Colônia, do regime escravocrata que sustentava a mineração, e das cidades que surgiram a partir dessa economia. Esse gibi me fez crescer obcecada por conhecer Ouro Preto/MG, o que aconteceu em 2018 e que eu considero o meu primeiro grande sonho realizado na vida. Paraty/RJ era a segunda nessa lista.
Nos últimos anos, várias pessoas diferentes que já conheciam a cidade me disseram que eu iria amá-la, que ela era a minha cara e que tinha uma energia singular — e todo mundo tinha razão. Paraty tem um charme e uma simpatia tão aconchegantes quanto vibrantes, e me maravilha como essas duas características conseguem coexistir de forma tão serena em um espaço só. A cidade acontece inteiramente nos detalhes, e a cautela necessária para caminhar as pedras funciona como a desculpa perfeita e a necessidade justificada de desacelerar: você precisa de calma para enxergar — a mesma calma que paira sobre a cidade e te garante que alguma magia acontece ali.
Mas toda a sua serenidade também é sutilmente dual: ela te acolhe e te inquieta o tempo todo. Sua história secular é latente e te provoca a não esquecer a razão da sua existência, te questiona sobre a acessibilidade das suas ruas, quer debater se realmente sabemos como garantir a conciliação entre a preservação histórica de forma democrática com todo o nosso futurismo e progresso. Ela delicadamente garante que há espaço para tudo coexistir no território limitado de uma cidade.
E Paraty me trouxe amores enormes. Me fez apaixonar pela simpatia das pessoas e dos cachorros paratienses (sim, os cachorros lá são extremamente simpáticos). Me levou a encontros não planejados. Me surpreendeu com as melhores comidas que eu já provei e com a imensa variedade de opções vegetarianas e veganas em todos os cafés e restaurantes em que entrei (algo que não vi nem na capital carioca). Me embalou em samba e música clássica em cada casa e em cada esquina. E para qualquer lado que eu olhasse, ela me garantia os horizontes que pareciam pinturas.
E enquanto escrevia tudo isso, senti um deslumbramento enorme com a minha relação com Paraty, com a forma como tudo se encaminhou na minha vida até aqui: minha história com a cidade começou por causa de uma leitura, e a oportunidade de conhecê-la surgiu por causa do meu livro, numa celebração literária.
Talvez autor nenhum consiga criar histórias assim deliberadamente.







II. As famosas gafes com famosos
Era o fim de 2015 e eu estava no shopping com alguns amigos. De repente, minha professora de literatura do ensino médio parou ao meu lado, me deu oi e eu perdi completamente a reação. A professora Fernanda não é famosa, mas até hoje é como uma popstar pra mim: ela me deixou obcecada pela literatura clássica e sua personalidade iluminada é capaz de manter mais de 40 adolescentes em fascínio por uma aula durante várias horas. Então, com a surpresa de encontrar alguém que eu admiro, os picos de emoção me congelaram.
E essa história ilustra facilmente três coisas sobre mim: eu não sei lidar com surpresas, me assusto muito fácil e descargas de adrenalina dão pane no meu sistema. Outra coisa relevante para as histórias a seguir: eu sou péssima em reconhecer pessoas, sejam elas famosas ou não.
Quando a piauí anunciou a programação pra FLIP e eu percebi que seria impossível participar de tudo, decidi por duas mesas como minhas paradas obrigatórias: uma com a Ana Clara Costa e outra com o Bernardo Esteves, repórteres da revista.
Na sexta, pouco depois da sessão de autógrafos do meu livro, aconteceu a mesa sobre os perfis da piauí, que costumam ser os meus artigos favoritos em qualquer veículo. Pessoalmente, eu encaro como dificílima a tarefa de perfilar alguém por enxergar que isso exige ao mesmo tempo um distanciamento enorme e o estabelecimento sutil de algumas teias de confiança: do perfilado em si mesmo e na sua imagem; do perfilado no responsável pelo trabalho; e, em algum nível, do autor na sua própria visão e tradução daquela história. Especificamente nos perfis da piauí, eu amo quando tratam de alguém muito controverso ou que eu abomino porque é a minha oportunidade de enxergar aquela pessoa por uma lente mais objetiva, entender de onde ela veio, saber coisas importantes que me passavam despercebidas e que eu ignoraria pesquisar justamente pela repulsa.
Uma das convidadas dessa mesa era a Ana Clara, autora de algumas matérias da piauí que mais me marcaram, como esse artigo fantástico sobre as políticas eleitorais pras cadeiras dos imortais da ABL e, principalmente, esse perfil brilhante da trajetória do Ali Kamel, diretor de jornalismo da Globo durante os últimos 22 anos. Esse artigo longuíssimo foi muito bem escrito mesmo diante de uma negativa de entrevista dele, e despertou a minha atenção pra escrita da Ana nos últimos meses: admiro como ela captura as nuances e te envolve nas reportagens, sempre muito dinâmica e levemente ácida. E ela também compõe a nova bancada do Foro de Teresina, meu podcast favorito e companheiro da minha rotina semanal, então não demorou pra eu virar fã.
Eu cheguei a tempo pra mesa e, mesmo assim, fiquei assistindo do lado de fora porque todas as pulseiras já tinham sido distribuídas. Mas eu dei sorte: quase meia hora depois, liberaram a entrada de cinco pessoas e, por estar colada à porta, consegui entrar para assistir ao painel do segundo ambiente da casa, onde uma TV transmitia tudo em tempo real. Quando a mesa terminou e todo mundo começou a sair, fui ao corredor que ligava as duas salas para espiar os livros e comprar alguns merchs da revista quando, esperando pra pagar, eu vi a Ana aparecer na outra sala com duas pessoas. Naquele momento, meu corpo reagiu à surpresa antes da minha mente processar a cena: eu andei até ela, pedi licença (graças a Deus), me apresentei e comecei a falar que eu admirava o seu trabalho. Foi aí que outra surpresa escalonou a adrenalina da situação: ao lado dela, estava o Celso Rocha de Barros, escritor e cientista político fantástico que também compõe a bancada do Foro. E aí minha mente embaralhou: eu reconheci o rosto e a voz mas duvidei do meu próprio reconhecimento e, dividindo olhares entre os dois, comecei a calcular se devia ou não falar com ele. Tudo isso aconteceu enquanto eu falava com a Ana sobre as suas matérias, e foi bem aí que eu cometi a gafe: disse que amei o perfil que ela fez do Valdemar Costa Neto. Só que não foi ela quem escreveu esse artigo, e eu sabia disso — mas não consegui lembrar nem o nome da Thaís Oyama (verdadeira autora do realmente brilhante perfil do Valdemar), e nem o nome do Ali Kamel, perfilado do artigo da Ana sobre o qual eu queria conversar. No instante em que falei o nome errado, vi o olhar de confusão dela encontrando o meu, e todo o momento só não foi pior porque a Ana é um amor e, educadíssima, não me corrigiu para não me deixar ainda mais constrangida. Eu agradeci e saí dali bem rápido, abandonando a ideia de falar com o Celso também.
Minutos depois, a salvação-surpresa da noite: o happy hour da Casa de Histórias. Comidinhas boas, duas doses de cachaça Gabriela, algumas taças de vinho e o embalo de uma boa conversa com uma nova amizade fizeram a receita para encarar a situação com bom humor, afinal, eu ainda estava em Paraty.



Na tarde do dia seguinte, flanei pela cidade sem compromisso de chegar a lugar algum, alternando entre uma rua agitada e uma rua tranquila. Em uma delas, dividindo a minha atenção entre seguir a música que alguém tocava e cuidar para não escorregar nas pedras, eu olho pra cima e me deparo com umas quinze pessoas reunidas. No meio delas e na direção do meu olhar, o inconfundível Gregorio Duvivier. Eu dei risada e parei exatamente onde estava pra observar a cena e ouvir o que ele dizia. Desviei o olhar pro celular pra contar no grupo que tinha visto ele e, quando olhei pra cima de novo, vi surgir atrás dele a também inconfundível Tati Bernardi. Então, tomada pela mesma adrenalina da noite anterior, quando vi, já tinha contornado todo mundo ao redor do Greg e andado até ela. Mas, dessa vez, a cena foi muito pior.
Cheguei já meio agitada e não percebi que outras duas meninas falavam com a Tati. Quando ela se virou pra me dar atenção, eu comecei a tropeçar entre os ois e as palavras, ela perguntou meu nome, me cumprimentou com um abraço e, quando eu olhei para a mulher lindíssima ao lado dela, a reconheci de cara e fiquei em pânico porque seu nome desapareceu da minha mente: simplesmente Vera Iaconelli, autora do magnífico Manifesto antimaternalista. Quanto mais eu olhava pra ela, mais nervosa eu ficava e acabei não falando nada que fizesse sentido pra nenhuma das duas — só lembro de fazer um comentário brincando que, dentre todos os trabalhos, eu amava também a amizade da Tati com a Marília Gabriela, “minha xará”. Foi péssimo, eu não lembrei o nome da Vera pra dizer que amava o livro dela, e fui embora tão rápido quanto cheguei. Saí de lá mortificada pelo mico colossal e, quando a adrenalina baixou e a exaustão subiu, decidi que era a hora de evitar outros grandes acontecimentos: sem happy hour dessa vez, descobri uma palestra maravilhosa na Casa Libre sobre os retratos de João do Rio e Chiquinha Gonzaga do Rio Belle Époque. Lá, observei um casal de senhores com um cachorrinho que, juro, parecia muito atento ao que as historiadoras contavam. Felizmente, encontrei alguma paz no meu restinho de FLIP.
Narrando essas situações, revivi todas as emoções no meu corpo: acelerou o coração, suei, fiz caretas, me contorci de vergonha. Mas pensei também no quão incrível é admirar tanto alguém e ter a oportunidade de dizer a ela que você valoriza e reconhece a grandeza do seu trabalho, mesmo que isso se expresse de um jeito meio bagunçado (acontece, vai). De alguma forma, todas essas pessoas e tantas outras, ainda que unilateralmente, estão presentes na minha vida ampliando meus horizontes e me fazendo questionar meus pensamentos e o mundo: tudo isso inspira a minha escrita e o trabalho que eu quero desenvolver — tudo isso é também parte da construção de quem eu quero ser.
Então, me perdoem as gafes: é que é bom demais admirar vocês, poxa!
III. A bruxa de Eastwick (Paraty edition)
No fim da manhã de sábado eu parei pra tomar um café e escrever um pouco. Perto de ir embora, olhei para uma das portas e vi uma menina lindíssima que, com os seus prováveis 14 anos e um vestido lavanda que fazia a pele dela brilhar, posava para uma foto em frente a uma porta azul marinho. A cena me hipnotizou, não sei se pelas cores ou se pela espontaneidade dela, e eu sorri como quem tinha encontrado algo precioso acontecendo — e foi quando ela olhou na minha direção e me flagrou assistindo a cena de dentro do café. Por meio segundo eu me senti descoberta e, no meio segundo restante, assumi a minha sinceridade de espectadora: sem emitir som algum, falei com os lábios “você está linda!”, ao passo que, com um sorriso enorme, ela respondeu também com os lábios um “obrigada!”, e voltou a olhar para a câmera com toda a sua presença de espírito.
Saí dali e fui andar sem rumo para fotografar as ruas da cidade. Observando as portas coloridas nas fachadas e lembrando daquela cena, percebi que as cores que eu vestia também poderiam ser coordenadas com o colorido de alguma porta. Mas, como estava andando sozinha, conseguir uma foto minha envolveria pedir para algum desconhecido tirá-la e, diferente daquela menina, ser fotografada é um lugar que eu ocupo com muita inquietação e desconforto.
Virando a próxima esquina, uma porta azulíssima entrou no meu campo de visão, e eu achei aquele o tom perfeito para contrastar o vermelho brilhante que eu vestia. Parei na calçada oposta e, encarando a porta como se a decisão fosse atravessá-la ou não, me perguntei se estaria disposta a confiar uma foto minha a alguém em prol daquilo que eu queria registrar — eu vim da arquitetura: cores e formas são muito importantes pra mim. Mas antes que eu pudesse decidir, a escolha se fez sozinha e um rapaz com uma câmera pendurada no pescoço veio até mim. Ele me deu oi, disse que me viu entrar na rua, que tinha gostado muito do meu estilo e perguntou se podia me fotografar. Disse que as cores que eu vestia, “naquela porta azul, ficariam perfeitas”. Luã contou que fotografa as pessoas pelas ruas de Paraty e do Rio de Janeiro. Descobri que ele também é sul-mato-grossense, natural de Três Lagoas, e mora no Rio há cinco anos. Talvez o fato de ele ser meu conterrâneo e magicamente receber a minha transmissão de pensamentos tenha me inspirado alguma confiança nele porque, dentre uma conversa sobre o que fazíamos, de onde viemos e o que eu pensava sobre a participação do Felipe Neto na FLIP, confessei que não me sentia confortável em posar e ser fotografada. E ele, com um sotaque e charme cariocas demais para um sul-mato-grossense, disse que iria me direcionar. Então, com a consciência de quem havia manifestado um destino pensando alto o suficiente para ser ouvida, eu topei.
Escrevendo essa história percebi que, sem querer, comprovei “o estabelecimento sutil de algumas teias de confiança” que ponderei no capítulo anterior ao escrever sobre a minha percepção da dificuldade de perfilar alguém — fotografar pessoas também é traçar um perfil. Mas, na fotografia, isso acontece de forma muito mais estática e aberta a interpretações do que quando se trabalha as palavras para construir uma imagem porque o controle maior está nas mãos de quem segura a câmera. É o fotógrafo quem escolhe o ângulo e enxerga o resultado antes daquele que é fotografado, ainda que este procure algum controle sobre o que é retratado de si.
Como leonina, sou pouquíssimo afeiçoada ao centro das atenções. Como escritora e entusiasta da fotografia, estou confortável ao máximo no lugar de observar, analisar e registrar — como leonina, gosto do controle. E 2024 vem me desafiando quanto a isso, me exigindo ocupar espaços fora do meu mundo e colocar os braços e a cabeça para fora da janela. E depois de muito resistir, estou aprendendo a ceder alguma confiança, mesmo que sob a condição autoimposta de fazer isso do meu jeito. Mas, ainda assim, aprendendo a ceder — aprendendo a confiar na minha capacidade de confiar.
Depois de algumas fotos na porta, quando o Luã me pediu para ficar de costas para a câmera e olhar por cima dos ombros, eu hesitei (meu ascendente em aquário naturalmente rejeita reproduzir qualquer clichê). Ele insistiu e eu só aceitei pra tudo aquilo terminar logo. Em seguida, quando ele me mostrou os registros, aquela foto acabou sendo a minha favorita.
Talvez, nos abrirmos para confiar o controle nas mãos de alguém seja um movimento de aproximação dos espaços e cores que estão distanciados de nós, em ângulos fora da nossa percepção. Às vezes, eles podem ser ainda melhores quando encontrados nos olhos de outra pessoa.
Mas, claro, a confiança acontece mais suavemente se conquistada com algum charme.



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